Cultura humanística em geral. Privilégio para ciências humanas: história,antropologia, sociologia, politica, religiões, teologia, filosofia e artes. Textos pessoais, convicções, textos extraídos, vídeos e imagens sempre atualizadas. A música sempre trilhará o blog. É minha paixão infinita.
quinta-feira, 31 de março de 2011
terça-feira, 29 de março de 2011
José Comblin: revolucionário pelo Evangelho de Jesus Cristo
José Comblin: revolucionário pelo Evangelho de Jesus Cristo
por Adailton Maciel Augusto
Na luz infinita encontra-se um dos mestres mais marcantes de meus tempos iniciais de estudante de filosofia e teologia. Belos tempos de Goiânia, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e, depois, São Paulo. Antes de conhecer Comblin, pessoalmente, fui iniciado por Hugo Paiva (in memorian), Gilberto Gorgulho, Ana Flora Anderson e o ilustre amigo Domingos Zamagna. Todos, mestres marcantes.
Falo do teólogo-pedagogo José Comblin. Amável, duro, silencioso e criterioso. Adjetivações simplórias para falar da riqueza desse bispo (compreendido aqui na linha dos dirigentes das sete igrejas do Apocalipse). Homem herdeiro da tradição patriarcal de Abraão, Isaac e Jacó. Dos reis, profetas e , nitidamente, Jesus de Nazaré.
Conhecedor profundo das escrituras. Enamorado do sentido original do Salmo 72 que apresenta o sentido primeiro da expressão rei-reino. Aliás, aquela que sustentava a reflexão de um epíscopo. Teólogo por excelência. Aliás, o teólogo consistente é o que cria e recria. A história do cristianismo e das religiões, como um todo, nos ensina isso. Para a tradição cristã, vide o legado de Santo Agostinho e de Tomás de Aquino: teologia produzida nas entranhas de seus tempos.
José Comblin, gente do povo. Herdeiro de padres vindos da Europa para preparar nossas almas contra o adversário satânico do “comunismo”. O próprio Comblin sugere isso. Estamos nos tempos de Pio XII. O Espírito Santo liberta esse homem de visões herméticas e infelizes sobre nossas realidades. Ele supera o provincianismo eurocêntrico-burguês e vê o belo onde só a aparência lembra o feio e o atraso. JOSÉ COMBLIN VIVE!
José Comblin, teólogo militante. Que sugestivo encontrar nos escritos de Comblin as “veias abertas“ (Eduardo Galeano) de seu tempo. Lúcido, conhecedor de história universal (aliás, talvez, o que mais tenha se valido da ciência histórica para fazer teologia séria, na linha dos teólogos e teólogas ligados à sistemática)), teologia clássica, filosofia, antropologia, política, sociologia, sagrada escritura e economia (aqui, discordo de outro mestre que tive o privilégio de entrevistar em sua residência, em Piracicaba, São Paulo, em julho de 1999. Falo de Hugo Assmann, que sugeria Comblin um pouco “manco” no discurso sobre economia. O amigo Assmann talvez , por demais, acadêmico e “duro” naquela fase da vida).
A empiria de Comblin partia de um ponto não comum ao pensamento clássico do saber teológico: a vida e liberdade. A vida como ela se faz. Creio que ele e o querido Eduardo Hoornaert estejam, juntos, na tríade marcante do discurso de Jesus nas parábolas: pão , saúde amor. (Diego Irarrazával em Um Jesus Jovial). A herança teológica de teor palaciana, catedralícia e monacal não era o que alimentava a teologia de Comblin e, sim, o Deus que aparece nas relações micro e macro, gerando e ressuscitando. Comblin não era afeito à herança dos banquetes e vinhos finos da corte de Constantino e Teodósio. Menos ainda da politização da fé em prol de um projeto que não o Reino que tem seus pilares mais sólidos no pós-império sacro-romano-germânico. COMBLIN VIVE!
José Comblin: o escritor do diálogo com o mundo que segue e uma igreja que caduca em certas compreensões. Que facilidade e lucidez. Que pensamento atualizado e lá na frente. Ouvi certa vez num Instituto de Teolgia de São Paulo, que o mestre seria repetitivo sugerindo que o discurso da “opção” pelos empobrecidos se foi. Releguei. Gente jovem, com vida pela frente. A velocidade de Comblin, já lhe permitia sugerir entre 1996 e 1997 os dilemas dos cristãs e cristãs no século XXI. Questões de forte pertinência emergiriam nessa obra. Foi lida? Jovens leigas e leigos sabem do que se trata?Futuros sacerdotes apreciam? Não. Anjos de três, sete e doze asas encantam mais.Ou talvez, vozes belas ou pseudo-belas entoando canções que fazem voar digam.... JOSÉ COMBLIN VIVE!
José Comblin: o profeta. Bem na herança do Antigo Testamento e de Paulo, apaixonado pela comunidade de Filipos , Comblin faz a Grande Travessia com a fé protegida. Combateu o bom combate, Foi fiel, Em tempos de melodias, de autógrafos em casas de show e aglomerações massificantes, entre São Paulo e Rio de Janeiro, esse homem quieto e jovial comove também.JOSÉ COMBLIN VIVE!
Como foi bom sentar a seu lado por duas vezes em Belo Horizonte no Congresso Nacional da Soter (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião) e aprender da melodia de seu silêncio. Prefiro o silêncio e a profecia ao autógrafo. O Profeta que enfrentou a ditadura, as conveniências e críticas dolorosas. JOSÉ COMBLIN VIVE!
José Comblin: a força histórica dos pequenos e a sempre viva utopia. Nosso mestre acredita no que poucos ou somente grupos conscientes e organizados reivindicam. Ele crê no mundo renovado com os pequenos à frente ( indígenas, negras e negros, mulheres,crianças, homessexuais,operários, idosos, excluídos, etc...). Nada mais evangélico. Aliás ele vinha escrevendo sobre essa distinção conceitual e categórica necessária: o que é evangelho e o que seria religião. Com Comblin, lembro de nosso querido Betinho no sétimo intereclesial de Ceb’s em Duque de Caixas(1989) que sugeria a vontade social precursora da vontade política. Comblin foi assim. Imaginem comigo, os dois, agora, no tempo do Criador, cantando junto dos anjos o “Glória dos Pobres” de nosso Reginaldo Veloso. JOSÉ COMBLIN VIVE!
A morte de Padre José Comblin.Presidente da CRB de Salvador fala sobre a morte do Teólogo, Padre Comblin
Presidente da CRB de Salvador fala sobre a morte do Teólogo, Padre Comblin | ![]() | ![]() | ![]() |
Escrito por Administrator |
Seg, 28 de Março de 2011 08:57 |
![]() Assim se expressou durante o velório de Padre José Comblin, o Padre Edgar Silva Júnior, Presidente da Conferência dos Religiosos de Salvador, Bahia. "E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? É terceiro domingo da quaresma, o evangelho apresenta Jesus na beira do poço pedindo água a mulher samaritana. Na cidade de São Salvador da Bahia chove muito. Longe do centro turístico, na região metropolitana, bem na divisa entre Salvador e Simões Filho, num bairro pobre e meio esquecido está o “Recanto da Transfiguração” – uma comunidade de consagradas que vivem a espiritualidade trinitária. Foi nesta casa simples e acolhedora que José Comblin se encontrava. Foi cercado de gente simples que ele celebrou há dias atrás, seus 88 anos de vida, com direito a bolo e vela para apagar. Ao lado da capela num simples quarto, na manhã do dia 27 de março, embalado nos braços da Trindade Santa, José foi para casa do Pai. Recebi o telefonema do Frei Luciano da CPT e imediatamente segui para local. No caminho fui avisando aos amigos e amigas, que pudessem ir para lá. Cheguei no Recanto da Transfiguração... Comblin estava na cama onde tinha dado o último suspiro. O semblante tranquilo de quem morreu como tinha sonhado... cheguei bem perto, peguei em sua mão, afagei seu rosto e lembrei naquele instante de pessoas que gostariam de fazer aquele mesmo gesto... e disse baixinho: “José esse aperto de mão é em nome do Beozzo, do CESEP, do CEBI, do Carlos Mestres, da Ivone Gebara, das faculdades de teologia onde você lecionou, do Fr Betto, do Marcelo Barros,do Ir. Bruno de Taizé, das Comunidades eclesiais de base...e tantos e tantas... é também em nome da Teologia da Enxada! Na sala, ao lado do quarto, estavam Frei Luis Cappio, Bispo da Barra (BA), onde atualmente residia Comblin; também Eduardo Hoonaert e a esposa e a Mônica que o acompanhava. Dom Cappio nos convida a celebrar a Eucaristia. Pegamos juntos o corpo do José, levamos para capela, e numa celebração simples, familiar de pouco mais de vinte pessoas, entoamos canções que marcaram a história das comunidades. Rezamos, ouvimos o testemunho dos que ali estavam e dos amigos que conviveram com Comblin. Terminada a celebração embalados por canções e preces nos despedimos. Pe José Comblin será sepultado na Paraíba. Lá seu corpo será semeado, no mesmo chão nordestino que acolheu Pe Ibiapina, Padre Cícero, Margarida Maria Alves, Dom Hélder Câmara... E agora, José?Fechei alguns botões da sua camisa; no quarto onde veio a falecer, coloquei no guarda roupa os óculos que ainda estavam sobre a cama. Lá fora a chuva caia fina, algumas pessoas ainda chegavam, quase todos sempre com o mesmo sentimento: Muito obrigado José Comblin! Recordei sua profecia, seus escritos, sua lucidez...e me veio no pensamento a canção: A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?" Padre Edegard Silva Júnior Presidente da CRB de Salvador-Ba |
Última atualização em Seg, 28 de Março de 2011 11:00 |
Comblin: Bastão de Deus que fustiga os acomodados de ADITAL em 28.03.2011
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Adital
Estou acompanhando o que se anda dizendo nos últimos dias sobre o nosso irmão teólogo José Comblin. Houve quem tentou até se compadecer dele dizendo que já passou dos oitenta e chegou a insinuar que ele está meio "gagá”. E por está gagá, coitadinho, passou a dizer umas coisas fora de lugar, fazendo umas afirmações pessimistas, vendo o horizonte escuro, tendo uns ataques de "alucinação”, enxergando coisas que não existem, falando mal da hierarquia da Igreja e assim por diante.
Todas essas coisas me fizeram imediatamente pensar nos profetas de todos os tempos. Também eles, quando começaram a falar sem meios-termos, a "dar nomes aos bois”, a colocar o dedo em certas feridas, foram logo acusados de serem visionários, lunáticos, inimigos da religião e do rei. Amós, por exemplo, foi acusado por Amasias, sacerdote de Betel e "capanga” de Jeroboão, de ser um visionário. Por essa razão foi impedido de profetizar no santuário do rei (Am 7,10-17). Jeremias foi surrado e preso (Jr 20,1-6). Antes deles, Elias teve que se refugiar no deserto para não ser assassinado por Jezabel (1Rs 19,1-8). Geralmente todos os profetas são perseguidos e ridicularizados por que falam a verdade e não camuflam a realidade. Creio que o paradigma de todos os profetas é Miquéias, odiado porque nunca profetizava coisas boas, mas só desgraças (1Rs 22,8). Ou seja, não era bajulador e conivente com os poderosos, mas falava apenas o que Javé mandava falar (1Rs 22,14). Era fiel somente Deus.
Também Jesus, o profeta por excelência, não escapou da fúria dos poderosos. Falou o que pensava, do que estava convencido, atacando tanto o sistema religioso como o poder político. Por essa razão chegaram a pensar que ele estava louco (Mc 3,21). Terminou os seus dias crucificado como um malfeitor. Tinha feito tremer a ordem estabelecida e ameaçado a posição dos privilegiados, desmascarando suas hipocrisias e suas falsidades (Mt 23,1-36).
Não. Comblin não está gagá, não está louco, não está tomado de pessimismo e nem tão pouco de derrotismo. Comblin é um dos poucos profetas que ainda temos na Igreja dos nossos dias. Infelizmente em tempos de exílio eclesial, como o que estamos vivendo atualmente, é rara a figura do profeta. "Nesse nosso tempo, não há chefe, profeta ou dirigente” (Dn 3,38). Quando a corrupção atravessa os limiares da religião, e permanece entranhada dentro dela, são poucas as pessoas dotadas de clareza e de lucidez (1Sm 3,1). Todos querem fazer carreira e preferem silenciar, mesmo sabendo interiormente que o que acontece não condiz com o projeto de Deus. Como verdadeiro profeta, Comblin não se deixa enganar e não se ilude com o que vê. Enxerga longe, além das aparências e dá o seu prognóstico, mesmo que tal prognóstico, como no caso de Miquéias, apareça cruel, sem piedade e sem esperança. Mas é assim mesmo e assim deve ser, pois se trata de profeta e de profecia.
O profeta é o bastão de Deus que fustiga os acomodados. E onde há profetas verdadeiros e autênticas profecias há incômodo e mal-estar para muita gente. Dom Tonino Bello, bispo de uma minúscula diocese do sul da Itália, falecido ainda jovem, vítima de um câncer, gostava de afirmar que o autêntico cristão deve consolar os aflitos e afligir os consolados e acomodados. De fato, ele incomodou bastante seus colegas bispos italianos. Sua simplicidade e pobreza, sua determinação em defender os pobres, especialmente os imigrantes africanos, o colocou em rota de colisão com as eminências e excelências. Teve inclusive que dar explicações à cúpula da Igreja acerca da sua atitude audaciosa de acolher no palácio episcopal alguns imigrantes africanos. Mandaram-lhe como visitador um bispo de uma diocese da Sicília, o qual, logo depois de sua visita a Dom Tonino, ficou conhecido no país por suas ligações com a máfia, sendo inclusive processado pela justiça italiana. Não foi preso porque a diplomacia vaticana entrou em ação e não permitiu que isso acontecesse.
Comblin é um autêntico teólogo e como tal não se contenta em ficar repetindo o que os outros já disseram. Não é teólogo-papagaio e nem faz teologia de coorte, apenas repetindo frases do Catecismo ou de documentos da Igreja para agradar a cúpula eclesiástica, receber elogios ou até compensações, como, por exemplo, uma roupa roxa ou avermelhada. Comblin faz teologia de verdade, ousando dizer o que ninguém diz, propondo alternativas para o que aí está, apontando caminhos que podem ser trilhados. Como teólogo-profeta mostra que certos modelos atuais de Igreja estão carcomidos pelo tempo e por vícios seculares e não dizem mais nada para a humanidade que sonha com outro mundo possível e com uma comunidade eclesial que, de fato, seja sinal desse novo mundo.
Com sua ousadia e determinação profética, Comblin não tem medo de afirmar que a Igreja precisa perscrutar os "sinais dos tempos”. Não pode viver acomodada, acreditando que o atual modelo eclesiástico é o melhor de todos os tempos. Creio que Comblin está sendo ridicularizado porque do alto de sua sabedoria anciã tem a coragem de falar palavras proféticas como essas: "A experiência mostra que a hierarquia errou muitas vezes na condução da Igreja em circunstâncias determinadas. O Espírito mostra o caminho por outros meios. A hierarquia deve estar atenta aos sinais dos tempos que alguns cristãos têm o dom de entender. Deve escutar se não quer errar e provocar desastres” (A profecia na Igreja, São Paulo: Paulus, 2008, p. 11). Alguns membros da hierarquia não suportam tanta sinceridade e honestidade. Estendendo o dogma da infalibilidade papal para todos os casos e para todos os hierarcas, sem exceção, não admitem que alguém diga que alguns deles, em algum momento, erraram e continuarão a errar se não souberem escutar. Atribuem a si mesmos uma prerrogativa divina, ocupando na Igreja e na terra um lugar que pertence exclusivamente a Deus.
Não temos como negar. É visível a mudança de rota na Igreja Católica Romana a partir do final da década de 1970. Aos poucos as propostas e intuições do Concílio Vaticano II são postas de lado ou reinterpretadas a partir de uma eclesiologia jurídica, segundo a qual o direito canônico está acima do Evangelho. Enquanto se perde tempo com a discussão de temas banais, questões sérias não são enfrentadas. Basta lembrar, por exemplo, o caso da centralidade da celebração eucarística. Institui-se um ano eucarístico, afirma-se que a Eucaristia é o centro e o cume da vida cristã, e, no entanto, não se resolve o problema gravíssimo das milhares e milhares de comunidades católicas que ficam meses e até anos sem a celebração eucarística dominical.
Qualquer pessoa honesta, que conheça bem a situação da Igreja no momento atual, não poderá negar que ela está sendo dominada por grupos e movimentos ultraconservadores. Tais grupos e movimentos estão trazendo de volta a Igreja da Contra-Reforma, fechando cada vez mais os espaços de participação do povo de Deus, impondo uma moral rigorista e "tirando do baú” costumes e tradições arcaicas, "mofadas” e ridículas. Os pobres são cada vez mais esquecidos e é notória a adesão desse modelo de Igreja a sistemas políticos de direita. Com isso a Igreja Católica Romana vai se distanciando da realidade do povo e se tornando cada vez mais um sinal opaco e sem sentido do Reino de Deus. Por essa razão é cada vez mais visível o afastamento das comunidades eclesiais de pessoas com um pouco de bom senso e com consciência crítica. A Igreja Católica vai se transformando, no dizer de Cappelli, numa comunidade "infantil, feminil e senil”. Uma Igreja só de crianças e de mulheres idosas. Alguns até se empolgam porque, de vez em quando, aparecem jovens distraídos em alguns espaços religiosos. Mas não deveriam se iludir. A participação de jovens nas comunidades católicas não ultrapassa a percentagem de 1% do total de jovens da nossa sociedade.
Dizia pouco antes, citando o profeta Daniel, que na atualidade não temos mais nem chefe e nem profeta. De fato, as lideranças cristãs transformaram o serviço de coordenação e de presidência das comunidades em puro carreirismo. Por isso adotam uma atitude de subserviência, não se importando com os reais problemas de suas comunidades. Os próprios bispos não mais cultivam a solicitude por todas as Igrejas, elemento fundamental do ministério episcopal e do colégio episcopal. Assim sendo, não falam com as instâncias vaticanas com a autoridade de bispos das Igrejas locais e da Igreja Católica, de igual para igual. Agem com timidez e medo, deixando de oferecer à direção da Igreja em Roma seus pareceres sobre questões e problemas eclesiais inadiáveis. Sem falar em todo o problema da onipotência da burocracia eclesiástica que, como nota o próprio Comblin, não se move e não faz nada para uma maior descentralização (cf. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo: Paulus, 2005, pp. 60-64).
Por que, então, tanto escândalo e tanto alvoroço com aquilo que Comblin falou ultimamente? Será que perdemos a capacidade de enxergar? Por que insistimos num comportamento de avestruz, recusando-nos a ver o que é tão visível? Por que duvidar da possibilidade de "politicagem e de conchavos” dentro da Igreja Católica? Por acaso não conhecemos a sua história para saber que ela sempre esteve cheia desses casos? Será que esquecemos que os escritores dos primeiros séculos do cristianismo a chamavam de "casta meretrix”, de "casta prostituta”? Será que chegamos a um nível tal de arrogância a ponto de achar que o atual sistema eclesiástico é tão perfeito a ponto de não mais precisar de reformas e nem de profetas para pregar a conversão da Igreja?
Comblin é um profeta que possui sensibilidade para perceber o que está acontecendo. E por isso fala sem medo e sem falsas contenções. Ele, enquanto ancião, é um verdadeiro modelo para as novas gerações de cristãos e de cristãs. Como o velho Eleazar (2Mc 6,18-31) prefere a morte, a perseguição e a calúnia do que trair suas próprias convicções. Não aceita fingir para escapar dos olhares mortíferos dos acomodados e incomodados. Recusa-se a ser tratado com benevolência e a trocar sua fidelidade por vantagens. Assim, "coerente com a sua idade e com o respeito da velhice, coerente com a dignidade dos seus cabelos brancos” (2Mc 6,23), prefere continuar firme em sua profecia. Como Eleazar, ele tem consciência de que o fingimento, em troca de certas vantagens e do "bom nome”, escandalizaria os mais jovens. Assim é para todos nós um exemplo honrado de fidelidade. Uma fidelidade diferente, é claro. Ele não pretende amar a Igreja mais do que os outros, como insinuou alguém. Apenas ama-a de um modo diferente, radical e corajoso. Um modo, aliás, que não se tem visto ultimamente, inclusive entre os anciãos, e do qual tanto precisamos em nossos dias.
[Autor de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação vocacional. Foi assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999-2003) e Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (2002-2006). Atualmente é gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor de Antropologia da Religião e Ética. Contato com o autor pelo e-mail: jlisboa56@gmail.com].
quarta-feira, 16 de março de 2011
Entrevista: Leonardo Boff - Revista Isto É 28.05.2010
A edição da revista Isto É – Independente desta semana traz como um dos destaques uma entrevista com o teólogo brasileiro Leonardo Boff, apoiador da Teologia da Libertação, movimento que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais. Boff conhece o Papa Bento XVI há mais de 40 anos, quando conviveram na universidade, em Munique, Alemanha, mas acredita que Joseph Ratzinger é complacente com os pedófilos e fechou as portas para as outras religiões. Leia a seguir na íntegra:
“O Papa deveria renunciar”
Para o ex-frei, a Igreja ainda funciona como na Idade Média
O brasileiro Leonardo Boff, 71 anos, e o alemão Joseph Ratzinger, 83, têm uma longa história em comum. Intelectuais de fôlego, respeitados fora dos muros da Igreja Católica, os teólogos se conhecem há mais de 40 anos, quando conviveram na universidade, em Munique, Alemanha. O atual pontífice já era um cultuado professor, admirado pelo jovem franciscano que frequentava como ouvinte suas conferências, enquanto preparava a tese de doutorado – que contou com a ajuda providencial do alemão para ser publicada. Tempos depois, os dois trabalharam juntos em uma prestigiosa revista de teologia.
Durou pouco, pois as contendas ideológicas provocaram a saída de Ratzinger. Mas o encontro mais marcante aconteceu em 1985, quando ambos estavam, definitivamente, em trincheiras opostas, dentro da mesma instituição. Boff já era o grande mentor por trás da Teologia da Libertação, movimento que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais. E Ratzinger já havia se tornado o temido cardeal que punia severamente quem se atrevesse a mudar, uma vírgula que fosse, a interpretação oficial da “Bíblia”.
O embate terminou com o silêncio forçado do franciscano e sua posterior saída da ordem, em 1992. Vinte e cinco anos depois desse encontro, casado com Márcia Miranda, padrasto de seis filhos e autor de mais de 60 livros traduzidos para diversas línguas, Boff analisa a Igreja da qual nunca se afastou e seu líder máximo. Que ele conhece como poucos.
A Igreja Católica está em crise?
Leonardo Boff – A Igreja possui uma crise própria: até hoje ela não encontrou seu lugar no mundo moderno e no mundo globalizado. Suas estruturas são medievais. Ela é a única monarquia absolutista do mundo, concentrando o poder em pouquíssimas mãos. Nesse sentido ela está em contradição com o sonho originário de Jesus que foi o de criar uma comunidade fraterna de iguais e sem nenhuma discriminação.
Mas a Igreja Católica pode se modernizar sem perder a essência de seus princípios e, consequentemente, sua identidade?
Leonardo Boff – A Igreja se engessou em suas doutrinas, em suas normas, em seus ritos que poucos entendem e num direito canônico escrito para legitimar desigualdades e conservadorismos. Os homens de hoje têm o direito de receber a mensagem de Jesus na linguagem de nossa cultura moderna, coisa que a Igreja não faz. Ela coloca sob suspeita e até persegue quem tenta fazer.
O que o sr. acha que a Igreja Católica deveria fazer para sair dessa crise?
Leonardo Boff – Ela deveria ser menos arrogante, deixando de se imaginar a exclusiva portadora dos meios de salvação, a única verdadeira. Ela se diz perita em humanidade, mas maltrata a muitos desta humanidade internamente e ofende a vários direitos humanos. Por isso que até hoje não subscreveu a Carta dos Direitos Humanos da ONU, sob o pretexto de que ela não faz nenhuma referência a Deus, e retirou seu apoio ao Unicef, porque ele aconselha o uso de preservativo para combater a aids e fazer o planejamento familiar. Uma igreja que afirma constantemente que fora dela não há salvação, ela mesma precisa de salvação.
O sr. acha que os escândalos de pedofilia contribuem para a debandada católica, com fiéis migrando, no Brasil, principalmente, para as igrejas evangélicas?
Leonardo Boff – Muitos cristãos não aceitam ser infantilizados pela Igreja como se nada soubessem e tivessem que receber a comida na boca. Estes estão emigrando em massa. Mas é uma emigração interna. Continuam se sentindo dentro da Igreja, mas não identificados com as doutrinas deste papa, nem com o estilo com o qual ela se apresenta no mundo, com hábitos e símbolos palacianos que os tornam simplesmente ridículos. As igrejas evangélicas crescem porque a católica deixou um espaço vazio.
Muitos vaticanistas dizem que Bento XVI pensa em termos de séculos e não está preocupado em conquistar mais fiéis. O sr. concorda?
Leonardo Boff – Bento XVI é fiel a uma esdrúxula teologia que sempre defendeu e da qual eu ainda como estudante e ouvinte dele discordava. Ele é um especialista em Santo Agostinho, grande teólogo. Santo Agostinho partia do fato de que a humanidade é uma “massa condenada” pelo pecado original e pelos demais pecados. Cristo a redimiu. Criou um oásis onde só há salvação e graça. Esse oásis é a Igreja. Ocorre que esse oásis é uma fantasia. Ele é tão contaminado como qualquer ambiente, haja vista os pedófilos e outros escândalos financeiros.
Como o sr. avalia o pontificado de Bento XVI?
Leonardo Boff – Do ponto de vista da fé, este papa é um flagelo. Ele fechou a Igreja de tal forma sobre si mesma que rompeu com mais de 50 anos de diálogo ecumênico, vive criticando a cultura moderna, desestimula qualquer pensamento criativo, mantendo-o sob suspeita. Todo papa tem a missão imposta por Jesus de “confirmar os irmãos e as irmãs na fé”. Esta missão, a meu ver, não está sendo cumprida.
Por quê?
Leonardo Boff – Bento XVI cometeu vários erros de governo com respeito aos muçulmanos, aos judeus, às mulheres e às religiões do mundo. Reintroduziu o latim nas missas em que se reza ainda pela conversão dos judeus, reconciliou-se com os mais duros seguidores de Lefebvre (Marcel Lefebvre arcebispo católico ultraconservador, que morreu em 1991), verdadeiros cismáticos. Enquanto trata a nós teólogos da libertação a bastonadas, trata os conservadores com mão de pelica. É um papa que não suscita entusiasmo. Mesmo assim, convivemos com ele, porque a Igreja é mais que Bento XVI. É também o papa João XXIII, é dom Helder Câmara, é a Irmã Dulce, a Irmã Doroty Stang, é dom Pedro Casaldáliga e tantos e tantas.
O sr. acha que ele deveria renunciar?
Leonardo Boff – O papa, para o bem dele e da Igreja, deveria renunciar. Devemos exercer a compaixão: ele é um homem doente, velho, com achaques próprios da idade e com dificuldades de administração, pois é mais professor que pastor. Em razão disso, faria bem se fosse para um convento rezar sua missa em latim, cantar seu canto gregoriano que tanto aprecia, rezar pela humanidade sofredora, especialmente pelas vítimas da pedofilia, e se preparar para o grande encontro com o Senhor da Igreja e da história. E pedir misericórdia divina.
Como foi a convivência dos srs. no mesmo ambiente acadêmico?
Leonardo Boff – Ouvi-o muitas vezes, pois era um apreciado conferencista. Teve um papel importante na publicação de minha tese doutoral, que, por seu tamanho – mais de 500 páginas -, encontrava dificuldades junto às editoras. Ele encontrou uma, arranjou-me boa parte do dinheiro para a impressão em forma de livro. Depois fomos colegas nas reuniões anuais da revista internacional “Concilium”. Mas ele se desentendeu com a linha da revista e criou uma outra, a “Communio”, em franca oposição à “Concilium”.
Anos depois, em 1985, já na Congregação para a Doutrina da Fé, ele o puniu. Como foi esse encontro?
Leonardo Boff – Ele me fez sentar na cadeira onde sentou Galileo Galilei, no famoso edifício, ao lado do Vaticano, do Santo Ofício e da antiga Santa Inquisição. Foi meu “inquisidor”, interrogando-me por mais de três horas sobre o livro “Igreja: Carisma e Poder”, que me custou o “silêncio obsequioso”, a deposição de cátedra e a proibição de publicar qualquer coisa. Mas devo dizer que é uma pessoa finíssima, extremamente elegante na relação, mas determinado em suas opiniões. E muito, mas muito, tímido.
O sr. é a favor da ordenação de mulheres pela Igreja Católica?
Leonardo Boff – Não há nenhuma doutrina ou dogma que impeça as mulheres de serem ordenadas e até de serem bispos. O patriarcalismo intrínseco à instituição, governada só por homens e celibatários, faz com que não se tenha apreço pelas mulheres nem se reconheça o imenso trabalho que fazem dentro da Igreja. E, no entanto, devemos reconhecer que as mulheres, nos evangelhos, nunca traíram Jesus, como fez Pedro, foram as primeiras testemunhas do fato maior para a fé cristã, que é a ressurreição, e também foram discípulas.
O sr. também é a favor do fim da obrigatoriedade do celibato?
Leonardo Boff – O primeiro papa, Pedro, era casado. Aceito o celibato livremente assumido pelos que se propõem a servir às comunidades cristãs. Seria tão enriquecedor para a própria Igreja se houvesse, como há em outras igrejas, padres casados e padres celibatários. Mas o celibato desempenha uma função importante no estilo autoritário da instituição: ela pode dispor totalmente dos celibatários, sem laços com a família, transferi-los para onde quiser e ver-se livre de problemas de herança.
O sr. acha que os casos de pedofilia cometidos por padres têm relação com a obrigatoriedade da castidade?
Leonardo Boff – Entre a pedofilia e o celibato há um denominador comum que é a sexualidade. A educação sexual que os candidatos ao sacerdócio recebem é carregada de suspeitas e distorções e é feita longe do contato com as mulheres. Hoje sabemos que o homem amadurece sob o olhar da mulher e vice-versa. Quando se tolhe um desses polos da equação, pode surgir o recalque, a sublimação e as eventuais distorções. A pedofilia é uma distorção de uma educação sexual mal realizada. Ademais, a pedofilia é um pecado e um delito.
O sr. pode explicar melhor?
Leonardo Boff – A Igreja só via o pecado que podia ser perdoado, e tudo terminava aí. Não via as vítimas, que eram crianças e adolescentes que sofreram violência. Ela não via o delito que deve ser levado aos tribunais para ser julgado e receber a punição adequada. Este lado sempre foi mantido em sigilo, para não prejudicar a imagem da Igreja. Isso configura cumplicidade no crime. Graças a Deus, o papa agora acordou, se redimiu, reconheceu o delito e exige a denúncia dos pedófilos aos tribunais civis.
Quando o sr. era frei franciscano, soube de casos de abuso sexual?
Leonardo Boff – Nunca soube de nada.
O que o sr. acha da Renovação Carismática Católica?
Leonardo Boff – É um movimento forte, que trouxe muitos elementos positivos, pois tirou o monopólio dos padres. Agora o leigo fala e inventa orações, coisa que não ocorria. Deu certa leveza ao cristianismo, muito centrado na cruz e na paixão e menos na alegria e na celebração. Mas, a meu ver, ela ficou a meio caminho.
Por quê?
Leonardo Boff – Não se pode pensar no cristianismo sem justiça social e preocupação com os pobres. Todo carismatismo corre o risco de alienação. Eles se perdem no louvor, no cantar e dançar.
E como o sr. avalia os padres cantores, como Marcelo Rossi e Fábio de Melo?
Leonardo Boff – Eles produzem um tipo de evangelização adequada ao que é dominante hoje, que é o mercado. Mas com as limitações que o mercado impõe, tenham eles consciência disso ou não. É sempre problemático, do ponto de vista teológico, transformar a mensagem cristã numa mercadoria de fácil consumo e de pacificação das consciências atribuladas. Noto que as grandes questões sociais estão ausentes em seus discursos e cânticos.
Por quê?
Leonardo Boff – Eles falam sobre questões subjetivas. O cristianismo não pode funcionar como um ansiolítico que nos alivia, mas deve falar às consciências para que as pessoas tomem decisões que vão na direção do outro. Para mim, a mensagem cristã não significa buscar um porto seguro onde ancoramos para repousar. Mas é um chamado para irmos ao mar alto, para enfrentar as ondas perigosas. E não pedimos a Deus que nos livre das ondas, mas que nos dê força e coragem para enfrentá-las.
O sr. ainda é católico?
Leonardo Boff – Sou católico apostólico franciscano. Acho que São Francisco foi o último cristão verdadeiro e talvez o primeiro depois do Único, que foi Jesus Cristo. O franciscanismo me inspira mais do que o romanismo porque o romano é apenas uma qualificação geográfica.
Fonte: Isto É
“O Papa deveria renunciar”
Para o ex-frei, a Igreja ainda funciona como na Idade Média
O brasileiro Leonardo Boff, 71 anos, e o alemão Joseph Ratzinger, 83, têm uma longa história em comum. Intelectuais de fôlego, respeitados fora dos muros da Igreja Católica, os teólogos se conhecem há mais de 40 anos, quando conviveram na universidade, em Munique, Alemanha. O atual pontífice já era um cultuado professor, admirado pelo jovem franciscano que frequentava como ouvinte suas conferências, enquanto preparava a tese de doutorado – que contou com a ajuda providencial do alemão para ser publicada. Tempos depois, os dois trabalharam juntos em uma prestigiosa revista de teologia.
Durou pouco, pois as contendas ideológicas provocaram a saída de Ratzinger. Mas o encontro mais marcante aconteceu em 1985, quando ambos estavam, definitivamente, em trincheiras opostas, dentro da mesma instituição. Boff já era o grande mentor por trás da Teologia da Libertação, movimento que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais. E Ratzinger já havia se tornado o temido cardeal que punia severamente quem se atrevesse a mudar, uma vírgula que fosse, a interpretação oficial da “Bíblia”.
O embate terminou com o silêncio forçado do franciscano e sua posterior saída da ordem, em 1992. Vinte e cinco anos depois desse encontro, casado com Márcia Miranda, padrasto de seis filhos e autor de mais de 60 livros traduzidos para diversas línguas, Boff analisa a Igreja da qual nunca se afastou e seu líder máximo. Que ele conhece como poucos.
A Igreja Católica está em crise?
Leonardo Boff – A Igreja possui uma crise própria: até hoje ela não encontrou seu lugar no mundo moderno e no mundo globalizado. Suas estruturas são medievais. Ela é a única monarquia absolutista do mundo, concentrando o poder em pouquíssimas mãos. Nesse sentido ela está em contradição com o sonho originário de Jesus que foi o de criar uma comunidade fraterna de iguais e sem nenhuma discriminação.
Mas a Igreja Católica pode se modernizar sem perder a essência de seus princípios e, consequentemente, sua identidade?
Leonardo Boff – A Igreja se engessou em suas doutrinas, em suas normas, em seus ritos que poucos entendem e num direito canônico escrito para legitimar desigualdades e conservadorismos. Os homens de hoje têm o direito de receber a mensagem de Jesus na linguagem de nossa cultura moderna, coisa que a Igreja não faz. Ela coloca sob suspeita e até persegue quem tenta fazer.
O que o sr. acha que a Igreja Católica deveria fazer para sair dessa crise?
Leonardo Boff – Ela deveria ser menos arrogante, deixando de se imaginar a exclusiva portadora dos meios de salvação, a única verdadeira. Ela se diz perita em humanidade, mas maltrata a muitos desta humanidade internamente e ofende a vários direitos humanos. Por isso que até hoje não subscreveu a Carta dos Direitos Humanos da ONU, sob o pretexto de que ela não faz nenhuma referência a Deus, e retirou seu apoio ao Unicef, porque ele aconselha o uso de preservativo para combater a aids e fazer o planejamento familiar. Uma igreja que afirma constantemente que fora dela não há salvação, ela mesma precisa de salvação.
O sr. acha que os escândalos de pedofilia contribuem para a debandada católica, com fiéis migrando, no Brasil, principalmente, para as igrejas evangélicas?
Leonardo Boff – Muitos cristãos não aceitam ser infantilizados pela Igreja como se nada soubessem e tivessem que receber a comida na boca. Estes estão emigrando em massa. Mas é uma emigração interna. Continuam se sentindo dentro da Igreja, mas não identificados com as doutrinas deste papa, nem com o estilo com o qual ela se apresenta no mundo, com hábitos e símbolos palacianos que os tornam simplesmente ridículos. As igrejas evangélicas crescem porque a católica deixou um espaço vazio.
Muitos vaticanistas dizem que Bento XVI pensa em termos de séculos e não está preocupado em conquistar mais fiéis. O sr. concorda?
Leonardo Boff – Bento XVI é fiel a uma esdrúxula teologia que sempre defendeu e da qual eu ainda como estudante e ouvinte dele discordava. Ele é um especialista em Santo Agostinho, grande teólogo. Santo Agostinho partia do fato de que a humanidade é uma “massa condenada” pelo pecado original e pelos demais pecados. Cristo a redimiu. Criou um oásis onde só há salvação e graça. Esse oásis é a Igreja. Ocorre que esse oásis é uma fantasia. Ele é tão contaminado como qualquer ambiente, haja vista os pedófilos e outros escândalos financeiros.
Como o sr. avalia o pontificado de Bento XVI?
Leonardo Boff – Do ponto de vista da fé, este papa é um flagelo. Ele fechou a Igreja de tal forma sobre si mesma que rompeu com mais de 50 anos de diálogo ecumênico, vive criticando a cultura moderna, desestimula qualquer pensamento criativo, mantendo-o sob suspeita. Todo papa tem a missão imposta por Jesus de “confirmar os irmãos e as irmãs na fé”. Esta missão, a meu ver, não está sendo cumprida.
Por quê?
Leonardo Boff – Bento XVI cometeu vários erros de governo com respeito aos muçulmanos, aos judeus, às mulheres e às religiões do mundo. Reintroduziu o latim nas missas em que se reza ainda pela conversão dos judeus, reconciliou-se com os mais duros seguidores de Lefebvre (Marcel Lefebvre arcebispo católico ultraconservador, que morreu em 1991), verdadeiros cismáticos. Enquanto trata a nós teólogos da libertação a bastonadas, trata os conservadores com mão de pelica. É um papa que não suscita entusiasmo. Mesmo assim, convivemos com ele, porque a Igreja é mais que Bento XVI. É também o papa João XXIII, é dom Helder Câmara, é a Irmã Dulce, a Irmã Doroty Stang, é dom Pedro Casaldáliga e tantos e tantas.
O sr. acha que ele deveria renunciar?
Leonardo Boff – O papa, para o bem dele e da Igreja, deveria renunciar. Devemos exercer a compaixão: ele é um homem doente, velho, com achaques próprios da idade e com dificuldades de administração, pois é mais professor que pastor. Em razão disso, faria bem se fosse para um convento rezar sua missa em latim, cantar seu canto gregoriano que tanto aprecia, rezar pela humanidade sofredora, especialmente pelas vítimas da pedofilia, e se preparar para o grande encontro com o Senhor da Igreja e da história. E pedir misericórdia divina.
Como foi a convivência dos srs. no mesmo ambiente acadêmico?
Leonardo Boff – Ouvi-o muitas vezes, pois era um apreciado conferencista. Teve um papel importante na publicação de minha tese doutoral, que, por seu tamanho – mais de 500 páginas -, encontrava dificuldades junto às editoras. Ele encontrou uma, arranjou-me boa parte do dinheiro para a impressão em forma de livro. Depois fomos colegas nas reuniões anuais da revista internacional “Concilium”. Mas ele se desentendeu com a linha da revista e criou uma outra, a “Communio”, em franca oposição à “Concilium”.
Anos depois, em 1985, já na Congregação para a Doutrina da Fé, ele o puniu. Como foi esse encontro?
Leonardo Boff – Ele me fez sentar na cadeira onde sentou Galileo Galilei, no famoso edifício, ao lado do Vaticano, do Santo Ofício e da antiga Santa Inquisição. Foi meu “inquisidor”, interrogando-me por mais de três horas sobre o livro “Igreja: Carisma e Poder”, que me custou o “silêncio obsequioso”, a deposição de cátedra e a proibição de publicar qualquer coisa. Mas devo dizer que é uma pessoa finíssima, extremamente elegante na relação, mas determinado em suas opiniões. E muito, mas muito, tímido.
O sr. é a favor da ordenação de mulheres pela Igreja Católica?
Leonardo Boff – Não há nenhuma doutrina ou dogma que impeça as mulheres de serem ordenadas e até de serem bispos. O patriarcalismo intrínseco à instituição, governada só por homens e celibatários, faz com que não se tenha apreço pelas mulheres nem se reconheça o imenso trabalho que fazem dentro da Igreja. E, no entanto, devemos reconhecer que as mulheres, nos evangelhos, nunca traíram Jesus, como fez Pedro, foram as primeiras testemunhas do fato maior para a fé cristã, que é a ressurreição, e também foram discípulas.
O sr. também é a favor do fim da obrigatoriedade do celibato?
Leonardo Boff – O primeiro papa, Pedro, era casado. Aceito o celibato livremente assumido pelos que se propõem a servir às comunidades cristãs. Seria tão enriquecedor para a própria Igreja se houvesse, como há em outras igrejas, padres casados e padres celibatários. Mas o celibato desempenha uma função importante no estilo autoritário da instituição: ela pode dispor totalmente dos celibatários, sem laços com a família, transferi-los para onde quiser e ver-se livre de problemas de herança.
O sr. acha que os casos de pedofilia cometidos por padres têm relação com a obrigatoriedade da castidade?
Leonardo Boff – Entre a pedofilia e o celibato há um denominador comum que é a sexualidade. A educação sexual que os candidatos ao sacerdócio recebem é carregada de suspeitas e distorções e é feita longe do contato com as mulheres. Hoje sabemos que o homem amadurece sob o olhar da mulher e vice-versa. Quando se tolhe um desses polos da equação, pode surgir o recalque, a sublimação e as eventuais distorções. A pedofilia é uma distorção de uma educação sexual mal realizada. Ademais, a pedofilia é um pecado e um delito.
O sr. pode explicar melhor?
Leonardo Boff – A Igreja só via o pecado que podia ser perdoado, e tudo terminava aí. Não via as vítimas, que eram crianças e adolescentes que sofreram violência. Ela não via o delito que deve ser levado aos tribunais para ser julgado e receber a punição adequada. Este lado sempre foi mantido em sigilo, para não prejudicar a imagem da Igreja. Isso configura cumplicidade no crime. Graças a Deus, o papa agora acordou, se redimiu, reconheceu o delito e exige a denúncia dos pedófilos aos tribunais civis.
Quando o sr. era frei franciscano, soube de casos de abuso sexual?
Leonardo Boff – Nunca soube de nada.
O que o sr. acha da Renovação Carismática Católica?
Leonardo Boff – É um movimento forte, que trouxe muitos elementos positivos, pois tirou o monopólio dos padres. Agora o leigo fala e inventa orações, coisa que não ocorria. Deu certa leveza ao cristianismo, muito centrado na cruz e na paixão e menos na alegria e na celebração. Mas, a meu ver, ela ficou a meio caminho.
Por quê?
Leonardo Boff – Não se pode pensar no cristianismo sem justiça social e preocupação com os pobres. Todo carismatismo corre o risco de alienação. Eles se perdem no louvor, no cantar e dançar.
E como o sr. avalia os padres cantores, como Marcelo Rossi e Fábio de Melo?
Leonardo Boff – Eles produzem um tipo de evangelização adequada ao que é dominante hoje, que é o mercado. Mas com as limitações que o mercado impõe, tenham eles consciência disso ou não. É sempre problemático, do ponto de vista teológico, transformar a mensagem cristã numa mercadoria de fácil consumo e de pacificação das consciências atribuladas. Noto que as grandes questões sociais estão ausentes em seus discursos e cânticos.
Por quê?
Leonardo Boff – Eles falam sobre questões subjetivas. O cristianismo não pode funcionar como um ansiolítico que nos alivia, mas deve falar às consciências para que as pessoas tomem decisões que vão na direção do outro. Para mim, a mensagem cristã não significa buscar um porto seguro onde ancoramos para repousar. Mas é um chamado para irmos ao mar alto, para enfrentar as ondas perigosas. E não pedimos a Deus que nos livre das ondas, mas que nos dê força e coragem para enfrentá-las.
O sr. ainda é católico?
Leonardo Boff – Sou católico apostólico franciscano. Acho que São Francisco foi o último cristão verdadeiro e talvez o primeiro depois do Único, que foi Jesus Cristo. O franciscanismo me inspira mais do que o romanismo porque o romano é apenas uma qualificação geográfica.
Fonte: Isto É
"O Jesus de Nazaré de Joseph Ratzinger", por Eduardo Hoornaert. Fonte: www.adital.org.br
Nos intervalos de seus múltiplos compromissos como líder da igreja católica, o papa Bento XVI encontrou tempo para concluir um livro que já estava preparando desde algum tempo e que apresenta em dez capítulos a primeira parte da vida de Jesus: seu batismo; suas tentações; as falas do Reino de Deus; o sermão da montanha; as orações; os discípulos; as parábolas; as grandes imagens de São João; a confissão de Pedro; a autodefinição. O livro, publicado pela editora Planeta de São Paulo em 2007, é reflexo de muita meditação sobre a figura de Jesus e pode funcionar, nas prateleiras de nossas livrarias, como uma saudável opção diante de tantas publicações sensacionalistas que apresentam Jesus como o maior psicólogo que já existiu, o melhor líder e - por que não dizer? - o melhor vendedor. O autor sabe valorizar a beleza, a espiritualidade da vida e a ‘liturgia cósmica’. Ele se mostra sintonizado com autores como Romano Guardini, Hans Urs von Balthasar, Evdokimov , Pieter van der Meer e Reinhold Schneider, todos citados na bibliografia. As páginas sobre as ‘grandes imagens de São João’ (água, pão, vinho e pastor), por exemplo, são excelentes. Estamos diante de uma meditação e um aprofundamento da fé.
O autor declara que pretende situar-se na trajetória das pesquisas em torno de ‘Jesus histórico’, que têm ocupado muitos especialistas em estudos neotestamentários nos últimos cento e cinqüenta anos. É esse aspecto que pretendemos comentar neste texto. O autor inicia o livro com uma longa introdução de quase vinte páginas, na qual explicita que não pretende apenas escrever um livro de espiritualidade, mas, ao mesmo tempo, um ensaio de caráter científico. E diz com muita franqueza que não escreve na qualidade de líder da igreja católica, mas na qualidade de estudioso no assunto e que, portanto, todo(a) leitor(a) pode livremente discutir o que ele expõe em seu livro, sem preocupar-se com questões de ‘magistério’ (p. 19). A única coisa que ele pede é simpatia por seu esforço. De minha parte, só posso sentir simpatia pelo fato de um papa resolver estudar com seriedade os evangelhos e dispor-se a aceitar críticas. Pensei então em tecer algum comentário crítico em torno dos dois últimos capítulos do livro: a profissão de Pedro e a auto-afirmação de Jesus.
No penúltimo capítulo do ensaio, o autor interpreta o famoso trecho de Mt 16, 17-19, sobretudo as palavras: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja’. São palavras que –lidas hoje- tocam na corda sensível da autocompreensão da hierarquia católica. Nós católicos estamos acostumados a ler a frase num sentido institucional, o que se evidencia nas enormes letras que figuram na cúpula da Basílica de São Pedro, em Roma. Pedro seria a Pedra sobre a qual Jesus pretende construir sua igreja. Mal nos damos conta de que essa leitura de Mt 16, 17-19 não é a tradicional, pois só aparece no século V. Nos primeiros séculos, os referidos versos costumavam ser interpretados como um elogio de Jesus diante da fé e da segurança demonstradas por Pedro. Jesus fica entusiasmado em verificar que Pedro entende que ele é o Messias e não algum profeta ressuscitado. É assim que, até hoje, as igrejas ortodoxas interpretam o texto, como nos informa Meyendorff (The Primacy of Peter. Essays on Ecclesiology and the Early Church, Crestwood (NY), St. Vladimir‘s Seminary Press, 1992) que explica as palavras de Jesus a Pedro como a afirmação da fundamentação da igreja cristã na confissão de fé messiânica e, consequentemente, como elogio a Pedro que –diferentemente dos demais apóstolos– professa que Jesus é o Messias. Essa profissão significa algo muito importante na vida de Pedro, pois ele bem sabe que é arriscado dizer que Jesus é o Messias. Uma afirmação pública pode levar à morte. O texto foi escrito com o olhar voltado para o leitor, do qual se supõe que ele está na situação de Pedro. Ao narrar que Pedro interpreta sua própria vida de maneira nova ao dizer que Jesus é o Messias, o texto desafia o ouvinte/leitor do evangelho. Pedro, agora, não é mais pescador de peixe. Doravante sua vida só tem sentido dentro do apostolado. Ao rigor, a ‘confissão’ de Pedro diz respeito ao compromisso do ouvinte ou leitor do evangelho. Trata-se de um reconhecimento. Pedro experimentará mais adiante o que isso implica, pois a perseguição virá logo. O momento na companhia do Messias será curto, embora repleto de oportunidades excepcionais. Pedro sabe que tem de aproveitar ao máximo o ‘momento atual de oportunidades’ (como fala Paulo). Cada momento da vida que lhe resta serve para fazer algo de positivo na família e na sociedade. Pedro vive o tempo messiânico e, portanto, pode ser considerado ‘cristão’ (termo que equivale a ‘messiânico’). Eis como se lê Mt 16, 17-19 nos primeiros tempos, e isso se comprova pela comparação com outros textos da primeira literatura cristã (sobretudo Paulo) que se referem à vida em ‘tempo messiânico’.
Mas, essa primordial leitura se altera radicalmente por conta das longas confusões eclesiásticas que duram séculos e alcançam seu ponto mais crítico no concílio de Calcedônia em 451. Aqui outro autor, Wojtowytsch (Papsstum und Konzile von den Anfängen bis zu Leo I (440-461). Studien zur Enstehung der Überordnung des Papstes über Konzile, Stuttgart, A Hiersemann Verlag, 1981) pode nos servir de guia. Ele descreve que, até o final do século III, o papado não invoca Mt 16, 17-19, pois não se considera a instância diretriz da igreja. Os sínodos locais tomam decisões livre e soberanamente, normalmente na linha da tradição apostólica. Isso não muda na primeira parte do século IV. Os padres reunidos em Arles (314), Nicéia (325) e Sárdico (342) manifestam respeito diante do bispo de Roma, mas não veem nele nenhuma instância jurídica superior. Casos já julgados em Roma são tranqüilamente reexaminados e mesmo alterados pelos bispos reunidos em concílio. Notifica-se o papa por uma questão de deferência, nada mais. Os papas Silvestre e Libério (primeira parte do século IV) não reivindicam qualquer superioridade sobre o concílio. As coisas começam a mudar na segunda parte do século IV, com Damásio (366-384) e Sirício (384-399), que passam a usar termos como ‘cathedra Petri’ e fazem questão de incumbir alguns clérigos da guarda dos pretensos sepulcros de São Pedro e São Paulo em Roma. Aparece a imagem do barco da igreja com papa no leme, assim como a imagem paulina do corpo místico passa a mostrar o papa como ‘cabeça’ e os bispos como ‘membros’ da igreja. Ao mesmo tempo, a chancelaria papal empresta vocábulos da administração imperial como ‘Príncipe’ e ‘Pontífice’. Cresce a animosidade entre os patriarcados rivais de Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla. Roma distancia-se cada vez mais dos patriarcados gregos, insistindo na sua própria supremacia, sobretudo depois de 331 (inauguração de Constantinopla como nova capital do império). Novos distanciamentos e novas provocações acontecem sob Inocêncio I (401-417), que passa a intervir sistematicamente em assuntos de igrejas locais na Gália e Espanha, cada vez que uma ocasião se apresenta. O papa exige relatórios de casos ocorridos nas igrejas locais e reserva para si a última decisão. É verdade que nos casos que envolvem as igrejas orientais, Inocêncio é bem mais discreto. No caso de João Crisóstomo (Constantinopla), ele propõe convocar um concílio. Mas Celestino I (422-432) decide resolver pessoalmente o caso de Nestório, surgido em Alexandria, e delega o patriarca Cirilo de Alexandria como seu representante no concílio de Éfeso (431), sob protestos dos bispos da África. Embora se diga que Agostinho é o autor da frase ‘Roma locuta, causa finita’, o teólogo sempre afirma que a autoridade romana não pode entrar em concorrência com a igreja universal, representada pelo concílio plenário dos bispos.
Afinal, o primeiro papa que lê Mateus 16, 17-19 de forma exclusivista (e com isso ‘corta’ a igreja em dois pedaços) é o papa Leão I (440-461). No seu ‘Tomus ad Flavium’, de 449 (ironicamente, o termo ‘tomos’, em grego, significa ‘pedaço cortado’), humilha o patriarca de Constantinopla. O papa de Roma já tinha agido como chefe absoluto e controlado nos mínimos detalhes os concílios realizados na Espanha, Itália do Norte e África do Norte, mas agora se mete na suprema autoridade do Oriente ao entrar na controvérsia monofisita. Ele despreza a intervenção alexandrina e finalmente convoca o concílio de Calcedônia (451). No decorrer do concílio, o papa transmite ordens aos padres reunidos por meio de seus legados, declara nulas as decisões que não lhe agradam (como o cânone 28 que realça a importância da Sé de Constantinopla) e assim torna-se efetivamente o ‘dono de Calcedônia’. A postura do papa em Calcedônia impressiona e a correspondência em torno do evento é cuidadosamente guardada. Nela consta pela primeira vez uma fundamentação explícita do primado romano a partir de Mt 16, 17-19.
No final desta longa explanação de ordem historiográfica só tenho de dizer que a interpretação institucional de Mt 16, 17-19 não é a única nem a mais antiga. Ela não é aceita por todos os cristãos (até hoje os ortodoxos não a aceitam) nem representa uma leitura propriamente tradicional, pois só ganha força muito tardiamente, com o papa Leão I (440-461). Hoje, diante da urgência em dialogar com a diversidade religiosa que se manifesta mais claramente a cada dia que passa, é melhor abandonar esse embasamento do primado romano.
O último capítulo do livro em exame aborda o tema da auto-afirmação de Jesus enquanto ‘filho de Deus’. O ‘eu sou’ (em grego ‘egô eimi’) de Jesus é ‘absoluto’, afirma o autor. Aqui ele se fundamenta no evangelho de João, onde se lê, no capítulo oito, que Jesus declara: ‘Antes que Abraão existisse, eu sou’ (Jo 8, 58). No episódio com o cego de nascimento (capítulo nove), João diz que o rapaz nasceu cego ‘para que a ação de Deus se manifestasse através dele’ (9, 3), ou seja, a ação de Jesus se identifica com a ação de Deus. No capítulo dez, Jesus proclama que só ele é dono dos cordeiros. Os outros são ladrões e assaltantes. ‘Olhem, eu digo que quem não entra pela porteira, mas pula a cerca dos cordeiros é ladrão, é bandido’. Tanta auto-afirmação leva o povo de Jerusalém a gritar: ‘Jesus está blasfemando’. Tudo chega a um paroxismo no capítulo onze, após a ressurreição de Lázaro (vv. 1-44). O sinédrio se reúne às pressas (v. 45) e Caifás, sumo sacerdote do ano, pronuncia o veredicto: é melhor que Jesus morra. A história desemboca no drama da paixão, morte e ressurreição de Jesus. No evangelho de João, o ‘eu sou’ de Jesus faz com que ele não se compara com nenhuma figura da história de Israel, nem com Abraão, o pai de Israel. Numa só ocasião (7, 49), Jesus ele é comparado com outras pessoas. Pelo resto, ele sempre aparece no evangelho de João como quem sabe tudo de antemão, não faz perguntas a ninguém, a não ser para testar a fé dos outros, e se iguala a Deus.
O que dizer? No tocante à afirmação da divindade de Jesus, o evangelho de João entra em vivo contraste com os evangelhos sinóticos. No evangelho de Marcos, por exemplo, Jesus declara explicitamente não ser Deus: ‘Por que você me chama bom? Ninguém é bom senão Deus, só Deus’ (10, 18). Nos sinóticos se conta que João Batista inicia Jesus no ofício de pregador popular e batiza Jesus no Jordão ‘para a remissão dos pecados’. Mas no evangelho de João se omite a narrativa do batismo de Jesus e apenas se relata que Jesus aparece à beira do rio Jordão (1, 29-33). Ele não vem batizar ‘pela água, mas pelo Sopro Santo’. João Batista declara: ‘ele (Jesus) deve crescer, eu diminuir (3, 30). João Batista não fez nenhum sinal, mas tudo o que ele disse a respeito dele (de Jesus) é verdadeiro’ (10, 41). Além disso, apaga-se qualquer rastro de possível rivalidade entre o grupo de Jesus e o grupo de João Batista (o conflito aparece discretamente nos sinóticos). De tanto insistir na excepcionalidade de Jesus, o evangelho de João perde muito em termos de veracidade histórica, como dizem os exegetas.
Tudo isso nos convence que só conhecemos Jesus e seu movimento mediante textos. Não temos um conhecimento direto. Ora, os textos são por vezes contraditórios. Como unir a auto-afirmação ‘absoluta’ de Jesus no evangelho de João com a declaração humilde de Mc 10, 18 (só Deus é bom, eu não)? Há outras contradições, mesmo dentro de um mesmo evangelho. Em Mt 28, 19, Jesus manda evangelizar todos os povos, enquanto em Mt 10, 5-6 e 15, 24 ele proíbe evangelizar fora de Israel. Há tantas contradições nos evangelhos que a leitura ‘ao pé da letra’ só pode levar ao desapontamento. Em Mateus, Maria mora em Belém, em Lucas, ela mora em Nazaré. Em Mateus, o Sopro vem na hora do batismo, em Lucas antes da concepção (em Paulo depois da ressurreição). Em João 1, 33, João não conhece Jesus, enquanto em Lucas, Isabel é prima de Maria. Em Mateus, o pai de José chama-se Jacó, em Lucas, ele se chama Heli. O nascimento de Jesus, segundo Lucas e Mateus, acontece em Belém. Marcos e João não dizem nada a respeito e os informantes antigos não-evangélicos falam de um nascimento em Nazaré. Fica claro que não se pode avançar na leitura dos evangelhos sem tomar em conta os contextos em que foram redigidos, ou seja, sem ficar atento à mediação literária. Um pouco por toda parte, o velho método de se retalhar os textos evangélicos em trechos separados está sendo abandonado. Somente a leitura inteira dos evangelhos dá uma idéia do que cada autor quer dizer. Os evangelistas não são repórteres de fatos ocorridos com Jesus, nem simplesmente proclamadores ‘kerigmáticos’ que seguem um esquema preestabelecido. Cada um tem sua personalidade e trabalha sobre um material disponível, compõe um enredo dentro de uma intencionalidade própria. Mateus não deve ser confundido com Lucas nem com Marcos. João muito menos. Um autor escreve por se sentir motivado e querer entrar em diálogo com seu público ouvinte ou leitor. Por conseguinte, só por meio de leitura de um texto inteiro conseguimos captar o que um determinado autor quer dizer.
Tomemos um exemplo. A expressão ‘filho de Deus’ figura no primeiro verso do evangelho de Marcos e volta reiteradamente no evangelho de João. Será que a expressão significa o mesmo em ambos os casos? Para captar o que tanto Marcos como João querem dizer, não basta analisar os versos, é preciso ler os evangelhos inteiros e aí se verá que, desde o começo, Marcos mostra que Jesus é bastante forte para enfrentar o poder de Satanás, que o ataca no decorrer de todo o evangelho. Diante do poder dos filhos das trevas se eleva o poder do filho de Deus. João, de sua parte, escreve que Jesus é filho de Deus num contexto bem diferente. Há problemas com o farisaísmo que se reorganiza após os traumas dos anos 70 e os cristãos são malvistos nas sinagogas. Em certos casos, até expulsos. O termo ‘filho de Deus’ assume uma conotação nitidamente apologética diante das ameaças provenientes da ortodoxia judaica. Em suma, só lendo os textos inteiros conseguimos saber o que cada autor quer dizer. Misturar trechos de diversos evangelistas a fim de comprovar alguma tese, seja ela teológica ou eclesiástica, é tendencioso. Aí aparece o velho perigo da ‘interpretação de fora para dentro’, dos anacronismos, da ideologização e das apologias de posicionamentos assumidos antes de se iniciar a leitura.
O ensaio de Josef Ratzinger não escapa à ‘interpretação de fora para dentro’(em alemão: hineininterpretierung). Vale a pena compará-lo com outros livros sobre Jesus, disponíveis nas boas livrarias. Menciono apenas o livro ‘As várias Faces de Jesus’, da autoria de Geza Vermes, que usa um método mais convincente para se aproximar da figura histórica de Jesus de Nazaré (veja Editora Record, Rio de Janeiro, 2006. Há outros comentários da vida de Jesus disponíveis no mercado livreiro brasileiro: Meier, Brown, Crossan, Charlesworth, Duquesne, Sobrino, Boff, Betto, Hick, Theissen, Cornell, Irarrazaval, Nolan, Haight, Spong, Saramago). De nossa parte, preferimos o método de Vermes à maneira em que Ratzinger lê os textos, pois o primeiro situa sempre os textos no seu devido contexto. Mas, em última análise, quem está diante do texto evangélico é você, prezado(a) leitor(a). Você é livre e decide como prefere ler os evangelhos. Ninguém pode impedi-lo de seguir o fundamentalismo do papa.
O autor declara que pretende situar-se na trajetória das pesquisas em torno de ‘Jesus histórico’, que têm ocupado muitos especialistas em estudos neotestamentários nos últimos cento e cinqüenta anos. É esse aspecto que pretendemos comentar neste texto. O autor inicia o livro com uma longa introdução de quase vinte páginas, na qual explicita que não pretende apenas escrever um livro de espiritualidade, mas, ao mesmo tempo, um ensaio de caráter científico. E diz com muita franqueza que não escreve na qualidade de líder da igreja católica, mas na qualidade de estudioso no assunto e que, portanto, todo(a) leitor(a) pode livremente discutir o que ele expõe em seu livro, sem preocupar-se com questões de ‘magistério’ (p. 19). A única coisa que ele pede é simpatia por seu esforço. De minha parte, só posso sentir simpatia pelo fato de um papa resolver estudar com seriedade os evangelhos e dispor-se a aceitar críticas. Pensei então em tecer algum comentário crítico em torno dos dois últimos capítulos do livro: a profissão de Pedro e a auto-afirmação de Jesus.
No penúltimo capítulo do ensaio, o autor interpreta o famoso trecho de Mt 16, 17-19, sobretudo as palavras: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja’. São palavras que –lidas hoje- tocam na corda sensível da autocompreensão da hierarquia católica. Nós católicos estamos acostumados a ler a frase num sentido institucional, o que se evidencia nas enormes letras que figuram na cúpula da Basílica de São Pedro, em Roma. Pedro seria a Pedra sobre a qual Jesus pretende construir sua igreja. Mal nos damos conta de que essa leitura de Mt 16, 17-19 não é a tradicional, pois só aparece no século V. Nos primeiros séculos, os referidos versos costumavam ser interpretados como um elogio de Jesus diante da fé e da segurança demonstradas por Pedro. Jesus fica entusiasmado em verificar que Pedro entende que ele é o Messias e não algum profeta ressuscitado. É assim que, até hoje, as igrejas ortodoxas interpretam o texto, como nos informa Meyendorff (The Primacy of Peter. Essays on Ecclesiology and the Early Church, Crestwood (NY), St. Vladimir‘s Seminary Press, 1992) que explica as palavras de Jesus a Pedro como a afirmação da fundamentação da igreja cristã na confissão de fé messiânica e, consequentemente, como elogio a Pedro que –diferentemente dos demais apóstolos– professa que Jesus é o Messias. Essa profissão significa algo muito importante na vida de Pedro, pois ele bem sabe que é arriscado dizer que Jesus é o Messias. Uma afirmação pública pode levar à morte. O texto foi escrito com o olhar voltado para o leitor, do qual se supõe que ele está na situação de Pedro. Ao narrar que Pedro interpreta sua própria vida de maneira nova ao dizer que Jesus é o Messias, o texto desafia o ouvinte/leitor do evangelho. Pedro, agora, não é mais pescador de peixe. Doravante sua vida só tem sentido dentro do apostolado. Ao rigor, a ‘confissão’ de Pedro diz respeito ao compromisso do ouvinte ou leitor do evangelho. Trata-se de um reconhecimento. Pedro experimentará mais adiante o que isso implica, pois a perseguição virá logo. O momento na companhia do Messias será curto, embora repleto de oportunidades excepcionais. Pedro sabe que tem de aproveitar ao máximo o ‘momento atual de oportunidades’ (como fala Paulo). Cada momento da vida que lhe resta serve para fazer algo de positivo na família e na sociedade. Pedro vive o tempo messiânico e, portanto, pode ser considerado ‘cristão’ (termo que equivale a ‘messiânico’). Eis como se lê Mt 16, 17-19 nos primeiros tempos, e isso se comprova pela comparação com outros textos da primeira literatura cristã (sobretudo Paulo) que se referem à vida em ‘tempo messiânico’.
Mas, essa primordial leitura se altera radicalmente por conta das longas confusões eclesiásticas que duram séculos e alcançam seu ponto mais crítico no concílio de Calcedônia em 451. Aqui outro autor, Wojtowytsch (Papsstum und Konzile von den Anfängen bis zu Leo I (440-461). Studien zur Enstehung der Überordnung des Papstes über Konzile, Stuttgart, A Hiersemann Verlag, 1981) pode nos servir de guia. Ele descreve que, até o final do século III, o papado não invoca Mt 16, 17-19, pois não se considera a instância diretriz da igreja. Os sínodos locais tomam decisões livre e soberanamente, normalmente na linha da tradição apostólica. Isso não muda na primeira parte do século IV. Os padres reunidos em Arles (314), Nicéia (325) e Sárdico (342) manifestam respeito diante do bispo de Roma, mas não veem nele nenhuma instância jurídica superior. Casos já julgados em Roma são tranqüilamente reexaminados e mesmo alterados pelos bispos reunidos em concílio. Notifica-se o papa por uma questão de deferência, nada mais. Os papas Silvestre e Libério (primeira parte do século IV) não reivindicam qualquer superioridade sobre o concílio. As coisas começam a mudar na segunda parte do século IV, com Damásio (366-384) e Sirício (384-399), que passam a usar termos como ‘cathedra Petri’ e fazem questão de incumbir alguns clérigos da guarda dos pretensos sepulcros de São Pedro e São Paulo em Roma. Aparece a imagem do barco da igreja com papa no leme, assim como a imagem paulina do corpo místico passa a mostrar o papa como ‘cabeça’ e os bispos como ‘membros’ da igreja. Ao mesmo tempo, a chancelaria papal empresta vocábulos da administração imperial como ‘Príncipe’ e ‘Pontífice’. Cresce a animosidade entre os patriarcados rivais de Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla. Roma distancia-se cada vez mais dos patriarcados gregos, insistindo na sua própria supremacia, sobretudo depois de 331 (inauguração de Constantinopla como nova capital do império). Novos distanciamentos e novas provocações acontecem sob Inocêncio I (401-417), que passa a intervir sistematicamente em assuntos de igrejas locais na Gália e Espanha, cada vez que uma ocasião se apresenta. O papa exige relatórios de casos ocorridos nas igrejas locais e reserva para si a última decisão. É verdade que nos casos que envolvem as igrejas orientais, Inocêncio é bem mais discreto. No caso de João Crisóstomo (Constantinopla), ele propõe convocar um concílio. Mas Celestino I (422-432) decide resolver pessoalmente o caso de Nestório, surgido em Alexandria, e delega o patriarca Cirilo de Alexandria como seu representante no concílio de Éfeso (431), sob protestos dos bispos da África. Embora se diga que Agostinho é o autor da frase ‘Roma locuta, causa finita’, o teólogo sempre afirma que a autoridade romana não pode entrar em concorrência com a igreja universal, representada pelo concílio plenário dos bispos.
Afinal, o primeiro papa que lê Mateus 16, 17-19 de forma exclusivista (e com isso ‘corta’ a igreja em dois pedaços) é o papa Leão I (440-461). No seu ‘Tomus ad Flavium’, de 449 (ironicamente, o termo ‘tomos’, em grego, significa ‘pedaço cortado’), humilha o patriarca de Constantinopla. O papa de Roma já tinha agido como chefe absoluto e controlado nos mínimos detalhes os concílios realizados na Espanha, Itália do Norte e África do Norte, mas agora se mete na suprema autoridade do Oriente ao entrar na controvérsia monofisita. Ele despreza a intervenção alexandrina e finalmente convoca o concílio de Calcedônia (451). No decorrer do concílio, o papa transmite ordens aos padres reunidos por meio de seus legados, declara nulas as decisões que não lhe agradam (como o cânone 28 que realça a importância da Sé de Constantinopla) e assim torna-se efetivamente o ‘dono de Calcedônia’. A postura do papa em Calcedônia impressiona e a correspondência em torno do evento é cuidadosamente guardada. Nela consta pela primeira vez uma fundamentação explícita do primado romano a partir de Mt 16, 17-19.
No final desta longa explanação de ordem historiográfica só tenho de dizer que a interpretação institucional de Mt 16, 17-19 não é a única nem a mais antiga. Ela não é aceita por todos os cristãos (até hoje os ortodoxos não a aceitam) nem representa uma leitura propriamente tradicional, pois só ganha força muito tardiamente, com o papa Leão I (440-461). Hoje, diante da urgência em dialogar com a diversidade religiosa que se manifesta mais claramente a cada dia que passa, é melhor abandonar esse embasamento do primado romano.
O último capítulo do livro em exame aborda o tema da auto-afirmação de Jesus enquanto ‘filho de Deus’. O ‘eu sou’ (em grego ‘egô eimi’) de Jesus é ‘absoluto’, afirma o autor. Aqui ele se fundamenta no evangelho de João, onde se lê, no capítulo oito, que Jesus declara: ‘Antes que Abraão existisse, eu sou’ (Jo 8, 58). No episódio com o cego de nascimento (capítulo nove), João diz que o rapaz nasceu cego ‘para que a ação de Deus se manifestasse através dele’ (9, 3), ou seja, a ação de Jesus se identifica com a ação de Deus. No capítulo dez, Jesus proclama que só ele é dono dos cordeiros. Os outros são ladrões e assaltantes. ‘Olhem, eu digo que quem não entra pela porteira, mas pula a cerca dos cordeiros é ladrão, é bandido’. Tanta auto-afirmação leva o povo de Jerusalém a gritar: ‘Jesus está blasfemando’. Tudo chega a um paroxismo no capítulo onze, após a ressurreição de Lázaro (vv. 1-44). O sinédrio se reúne às pressas (v. 45) e Caifás, sumo sacerdote do ano, pronuncia o veredicto: é melhor que Jesus morra. A história desemboca no drama da paixão, morte e ressurreição de Jesus. No evangelho de João, o ‘eu sou’ de Jesus faz com que ele não se compara com nenhuma figura da história de Israel, nem com Abraão, o pai de Israel. Numa só ocasião (7, 49), Jesus ele é comparado com outras pessoas. Pelo resto, ele sempre aparece no evangelho de João como quem sabe tudo de antemão, não faz perguntas a ninguém, a não ser para testar a fé dos outros, e se iguala a Deus.
O que dizer? No tocante à afirmação da divindade de Jesus, o evangelho de João entra em vivo contraste com os evangelhos sinóticos. No evangelho de Marcos, por exemplo, Jesus declara explicitamente não ser Deus: ‘Por que você me chama bom? Ninguém é bom senão Deus, só Deus’ (10, 18). Nos sinóticos se conta que João Batista inicia Jesus no ofício de pregador popular e batiza Jesus no Jordão ‘para a remissão dos pecados’. Mas no evangelho de João se omite a narrativa do batismo de Jesus e apenas se relata que Jesus aparece à beira do rio Jordão (1, 29-33). Ele não vem batizar ‘pela água, mas pelo Sopro Santo’. João Batista declara: ‘ele (Jesus) deve crescer, eu diminuir (3, 30). João Batista não fez nenhum sinal, mas tudo o que ele disse a respeito dele (de Jesus) é verdadeiro’ (10, 41). Além disso, apaga-se qualquer rastro de possível rivalidade entre o grupo de Jesus e o grupo de João Batista (o conflito aparece discretamente nos sinóticos). De tanto insistir na excepcionalidade de Jesus, o evangelho de João perde muito em termos de veracidade histórica, como dizem os exegetas.
Tudo isso nos convence que só conhecemos Jesus e seu movimento mediante textos. Não temos um conhecimento direto. Ora, os textos são por vezes contraditórios. Como unir a auto-afirmação ‘absoluta’ de Jesus no evangelho de João com a declaração humilde de Mc 10, 18 (só Deus é bom, eu não)? Há outras contradições, mesmo dentro de um mesmo evangelho. Em Mt 28, 19, Jesus manda evangelizar todos os povos, enquanto em Mt 10, 5-6 e 15, 24 ele proíbe evangelizar fora de Israel. Há tantas contradições nos evangelhos que a leitura ‘ao pé da letra’ só pode levar ao desapontamento. Em Mateus, Maria mora em Belém, em Lucas, ela mora em Nazaré. Em Mateus, o Sopro vem na hora do batismo, em Lucas antes da concepção (em Paulo depois da ressurreição). Em João 1, 33, João não conhece Jesus, enquanto em Lucas, Isabel é prima de Maria. Em Mateus, o pai de José chama-se Jacó, em Lucas, ele se chama Heli. O nascimento de Jesus, segundo Lucas e Mateus, acontece em Belém. Marcos e João não dizem nada a respeito e os informantes antigos não-evangélicos falam de um nascimento em Nazaré. Fica claro que não se pode avançar na leitura dos evangelhos sem tomar em conta os contextos em que foram redigidos, ou seja, sem ficar atento à mediação literária. Um pouco por toda parte, o velho método de se retalhar os textos evangélicos em trechos separados está sendo abandonado. Somente a leitura inteira dos evangelhos dá uma idéia do que cada autor quer dizer. Os evangelistas não são repórteres de fatos ocorridos com Jesus, nem simplesmente proclamadores ‘kerigmáticos’ que seguem um esquema preestabelecido. Cada um tem sua personalidade e trabalha sobre um material disponível, compõe um enredo dentro de uma intencionalidade própria. Mateus não deve ser confundido com Lucas nem com Marcos. João muito menos. Um autor escreve por se sentir motivado e querer entrar em diálogo com seu público ouvinte ou leitor. Por conseguinte, só por meio de leitura de um texto inteiro conseguimos captar o que um determinado autor quer dizer.
Tomemos um exemplo. A expressão ‘filho de Deus’ figura no primeiro verso do evangelho de Marcos e volta reiteradamente no evangelho de João. Será que a expressão significa o mesmo em ambos os casos? Para captar o que tanto Marcos como João querem dizer, não basta analisar os versos, é preciso ler os evangelhos inteiros e aí se verá que, desde o começo, Marcos mostra que Jesus é bastante forte para enfrentar o poder de Satanás, que o ataca no decorrer de todo o evangelho. Diante do poder dos filhos das trevas se eleva o poder do filho de Deus. João, de sua parte, escreve que Jesus é filho de Deus num contexto bem diferente. Há problemas com o farisaísmo que se reorganiza após os traumas dos anos 70 e os cristãos são malvistos nas sinagogas. Em certos casos, até expulsos. O termo ‘filho de Deus’ assume uma conotação nitidamente apologética diante das ameaças provenientes da ortodoxia judaica. Em suma, só lendo os textos inteiros conseguimos saber o que cada autor quer dizer. Misturar trechos de diversos evangelistas a fim de comprovar alguma tese, seja ela teológica ou eclesiástica, é tendencioso. Aí aparece o velho perigo da ‘interpretação de fora para dentro’, dos anacronismos, da ideologização e das apologias de posicionamentos assumidos antes de se iniciar a leitura.
O ensaio de Josef Ratzinger não escapa à ‘interpretação de fora para dentro’(em alemão: hineininterpretierung). Vale a pena compará-lo com outros livros sobre Jesus, disponíveis nas boas livrarias. Menciono apenas o livro ‘As várias Faces de Jesus’, da autoria de Geza Vermes, que usa um método mais convincente para se aproximar da figura histórica de Jesus de Nazaré (veja Editora Record, Rio de Janeiro, 2006. Há outros comentários da vida de Jesus disponíveis no mercado livreiro brasileiro: Meier, Brown, Crossan, Charlesworth, Duquesne, Sobrino, Boff, Betto, Hick, Theissen, Cornell, Irarrazaval, Nolan, Haight, Spong, Saramago). De nossa parte, preferimos o método de Vermes à maneira em que Ratzinger lê os textos, pois o primeiro situa sempre os textos no seu devido contexto. Mas, em última análise, quem está diante do texto evangélico é você, prezado(a) leitor(a). Você é livre e decide como prefere ler os evangelhos. Ninguém pode impedi-lo de seguir o fundamentalismo do papa.
Eduardo Hoonaert
Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo
terça-feira, 15 de março de 2011
"O Cristo que vive entre nós", por Mauro Santayanna
O CRISTO QUE VIVE ENTRE NÓS
Mauro Santayana
O papa Bento 16, na biografia de Cristo que acaba de publicar, decretou, de sua cátedra, que Cristo separara a religião da política. Mais do que isso, participa de um dos equívocos de São Paulo – porque até os santos se enganam – o de que, se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, “vã é a nossa fé”. Cristo ressuscitou dos mortos, não em sua carne perecível, mas em sua grandeza transcendental. O papa insiste – e nessas insistências a Igreja sempre se perdeu – em que o corpo de Cristo ainda existe, em toda a fragilidade da carne, em algum lugar, ao lado de Deus. Com isso, o Santo Padre separa Cristo da humanidade a que ele pertence, e o situa no espaço da mitologia dos deuses pagãos.
A afirmação mais grave do Papa, de acordo com o resumo de suas idéias, ontem divulgadas, é a de que política e religião são instituições separadas a partir de Cristo. A própria história do Vaticano o desmente. A Igreja Católica – e todas as outras confissões religiosas – sempre estiveram a serviço do poder político, e em sua expressão mais desprezível. Para não ir muito longe na História – ao tempo da associação entranhada entre os reis, os imperadores e o Vaticano, durante a Idade Média -, bastam os exemplos de nosso século. Os documentos existentes demonstram o apoio da Igreja a ditadores como Hitler, considerado, por Pio XII, como “um bom católico”. Mais recentemente ainda, houve a “Santa Aliança”, conforme a denominou o jornalista norte-americano Bob Woodward, entre o antecessor de Ratzinger e o presidente Reagan, dos Estados Unidos, com o propósito definido de acabar com a União Soviética. Por acaso não se trata de uma escolha política do Vaticano a rápida canonização do fundador da Opus Dei, como santo da Igreja, e o esquecimento de grandes papas, como João 23, e de mártires da fé, como o bispo Dom Oscar Romero, de El Salvador?
A religião sempre esteve na origem e na inspiração da política, e, em Cristo, essa identidade comum se torna ainda mais nítida. O campo da razão em que a fé e a política se encontram é o da ética. A ética é uma exigência da fé em Deus e do compromisso com a vida humana. A política, tal como a identificaram os grandes pensadores, é a prática da ética. A ética política significa a busca do bem de todos. Nessa extrema exegese do que seja a ética, como o fundamento da justiça, a boa política é a da esquerda, ou seja, da visão de igualdade de todos os homens.
Em Cristo, a fé é o instrumento da justiça. Quem quiser confirmar esse compromisso político de Cristo, basta ler os Atos dos Apóstolos, e verificar como viviam as primeiras comunidades cristãs, unidas pela absoluta fraternidade entre seus membros, enfim, uma sociedade política perfeita. Ao negar a essencial ligação entre a fé cristã e a ação política, o papa vai além de seu velho anátema contra a Teologia da Libertação, surgida na América Latina, um serviço que ele e Wojtyla prestaram, com empenho, aos norte-americanos. Ele se soma aos que, hoje, ao separar a política da ética da justiça, decretam o fim da esquerda.
Esse discurso – o de que não há mais direita, nem esquerda – vem sendo repetido no Brasil. Esquerda e direita, ainda que a denominação venha da França revolucionária de 1789, sempre existiram. Na Palestina, no tempo de Jesus, a esquerda estava nos pescadores e pecadores que o seguiam, e a direita nos “fariseus hipócritas”, que, no Sinédrio, e a serviço dos romanos, o condenaram à morte.
O papa acredita que a Igreja sobreviverá à crise que está vivendo. Isso é possível se ela renunciar a toda sua história, a partir de Constantino, e retornar ao Cristo que andava no meio do povo, perdoava a adúltera, e chicoteava os mercadores do templo. O Cristo que ressuscitou dos mortos está ao lado dos que vêem a fé como a realização da justiça e da igualdade, aqui e agora.
Mauro Santayana
O papa Bento 16, na biografia de Cristo que acaba de publicar, decretou, de sua cátedra, que Cristo separara a religião da política. Mais do que isso, participa de um dos equívocos de São Paulo – porque até os santos se enganam – o de que, se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, “vã é a nossa fé”. Cristo ressuscitou dos mortos, não em sua carne perecível, mas em sua grandeza transcendental. O papa insiste – e nessas insistências a Igreja sempre se perdeu – em que o corpo de Cristo ainda existe, em toda a fragilidade da carne, em algum lugar, ao lado de Deus. Com isso, o Santo Padre separa Cristo da humanidade a que ele pertence, e o situa no espaço da mitologia dos deuses pagãos.
A afirmação mais grave do Papa, de acordo com o resumo de suas idéias, ontem divulgadas, é a de que política e religião são instituições separadas a partir de Cristo. A própria história do Vaticano o desmente. A Igreja Católica – e todas as outras confissões religiosas – sempre estiveram a serviço do poder político, e em sua expressão mais desprezível. Para não ir muito longe na História – ao tempo da associação entranhada entre os reis, os imperadores e o Vaticano, durante a Idade Média -, bastam os exemplos de nosso século. Os documentos existentes demonstram o apoio da Igreja a ditadores como Hitler, considerado, por Pio XII, como “um bom católico”. Mais recentemente ainda, houve a “Santa Aliança”, conforme a denominou o jornalista norte-americano Bob Woodward, entre o antecessor de Ratzinger e o presidente Reagan, dos Estados Unidos, com o propósito definido de acabar com a União Soviética. Por acaso não se trata de uma escolha política do Vaticano a rápida canonização do fundador da Opus Dei, como santo da Igreja, e o esquecimento de grandes papas, como João 23, e de mártires da fé, como o bispo Dom Oscar Romero, de El Salvador?
A religião sempre esteve na origem e na inspiração da política, e, em Cristo, essa identidade comum se torna ainda mais nítida. O campo da razão em que a fé e a política se encontram é o da ética. A ética é uma exigência da fé em Deus e do compromisso com a vida humana. A política, tal como a identificaram os grandes pensadores, é a prática da ética. A ética política significa a busca do bem de todos. Nessa extrema exegese do que seja a ética, como o fundamento da justiça, a boa política é a da esquerda, ou seja, da visão de igualdade de todos os homens.
Em Cristo, a fé é o instrumento da justiça. Quem quiser confirmar esse compromisso político de Cristo, basta ler os Atos dos Apóstolos, e verificar como viviam as primeiras comunidades cristãs, unidas pela absoluta fraternidade entre seus membros, enfim, uma sociedade política perfeita. Ao negar a essencial ligação entre a fé cristã e a ação política, o papa vai além de seu velho anátema contra a Teologia da Libertação, surgida na América Latina, um serviço que ele e Wojtyla prestaram, com empenho, aos norte-americanos. Ele se soma aos que, hoje, ao separar a política da ética da justiça, decretam o fim da esquerda.
Esse discurso – o de que não há mais direita, nem esquerda – vem sendo repetido no Brasil. Esquerda e direita, ainda que a denominação venha da França revolucionária de 1789, sempre existiram. Na Palestina, no tempo de Jesus, a esquerda estava nos pescadores e pecadores que o seguiam, e a direita nos “fariseus hipócritas”, que, no Sinédrio, e a serviço dos romanos, o condenaram à morte.
O papa acredita que a Igreja sobreviverá à crise que está vivendo. Isso é possível se ela renunciar a toda sua história, a partir de Constantino, e retornar ao Cristo que andava no meio do povo, perdoava a adúltera, e chicoteava os mercadores do templo. O Cristo que ressuscitou dos mortos está ao lado dos que vêem a fé como a realização da justiça e da igualdade, aqui e agora.
"Bento XVI inventa novo Cristo em livro". Do jornalista Ricardo Kotscho em 11.03.11 no Balaio do Kotscho
Os leitores mais atentos e fiéis do Balaio já sabem que não simpatizo muito com o papa Bento 16, o ultra conservador líder religioso alemão que está fazendo de tudo para esvaziar os templos da Igreja Católica.
Desta vez, dois mil e onze anos depois da primeira versão sobre sua passagem pela terra, o Papa simplesmente resolveu inventar uma nova biografia do Filho de Deus no livro “Jesus de Nazaré, da Entrada em Jerusalém até a Ressurreição”, lançado nesta quinta-feira, em que ele nega que Cristo tenha sido um “revolucionário”.
Para ficar de acordo com as suas obsessões e gostos pessoais, e adaptá-la mais às conveniências das sacristias do que à vida dos cristãos, simples mortais como todos nós, nesta biografia o Papa afirma que Jesus “não vem ao mundo como um destruidor”, mas “com o dom da cura”, para revelar “o poder do amor”.
Para começo de conversa, quem foi que disse essas coisas que ele desmente e as que proclama? De onde tirou isso?
Bento 16 nega uma afirmação que nunca ninguém fez para fazer uma outra que reduz seu papel na história a um curandeiro amoroso. Quem foi, aonde foi que se chamou Jesus de “destruidor”?
No segundo volume do seu livro sobre a vida de Jesus Cristo, o Papa-biógrafo escreve como se fosse testemunha ocular, um contemporâneo dele: “Jesus, com sua mensagem e modo de agir, inaugurou um reino não político do Messias e começou a separar uma coisa da outra”.
Nem Cristo separou política de religião, como me ensinaram os padres no colégio onde estudei, e assim aprendemos por toda parte até hoje, lá aonde a Igreja sobrevive aos dogmas papais, nem Bento 16, exatos 2010 anos depois, foi capaz desta proeza, como demonstrou ainda no ano passado ao utilizar seu cargo para convencer bispos brasileiros a apoiar a candidatura presidencial de José Serra.
A hipocrisia do sumo pontífice, que escreve uma coisa no livro e na vida real pratica outra exatamente oposta, fica clara no contundente artigo “O Cristo que vive entre nós” escrito pelo meu velho e brilhante amigo Mauro Santayana, um jornalista que entende tanto de religião como de política.
“A afirmação mais grave do Papa, de acordo com o resumo de suas ideias, é a de que política e religião são instituições separadas a partir de Cristo. A própria história do Vaticano o desmente. A Igreja Católica _ e todas as outras confissões religiosas _ sempre estiveram a serviço do poder político, e em sua expressão mais desprezível.
Para não ir muito longe na história _ ao tempo da associação entranhada entre os reis, os imperadores e o Vaticano, durante a Idade Média _, bastam os exemplos do nosso século. Os documentos existentes demonstram o apoio da Igreja a ditadores como Hitler, considerado, por Pio XII, como `um bom católico´.
(…) Por acaso, não se trata de uma escolha política do Vaticano a rápida canonização do fundador da Opus Dei, como santo da Igreja, e o esquecimento de grandes papas, como João 23, e de mártires da fé, como o bispo Oscar Romero, de El Salvador?”.
Sem citar a Teologia da Libertação, seu alvo predileto desde os tempos de cardeal da inquisição responsável no Vaticano pelo julgamento de religiosos progressistas como Leonardo Boff, o frade brasileiro banido da Igreja Católica, o Papa se refere a “uma onda de teologias políticas e de teologias da revolução”, na década de 1960, que teriam por objetivo “legitimar a violência como meio para instaurar um mundo melhor”.
Pelos relatos até agora divulgados, embora queira defender exatamente o contrário, negando o papel político e revolucionário de Jesus Cristo na História, Bento 16 escreveu outro livro mais político do que religioso, mais ideológico do que teológico. Mauro Santayana foi direto ao ponto:
“Ao negar a essencial ligação entre a fé cristã e a ação política, o Papa vai além do seu velho anátema contra a Teologia da Libertação, surgida na América Latina, um serviço que ele e Wojtyla prestaram, com empenho, aos norte-americanos. Ele se soma aos que, hoje, ao separar a política da ética da justiça, decretam o fim da esquerda”.
O Papa pode brigar com fatos históricos de dois milênios atrás, mas parece bem informado sobre as dificuldades que a Igreja sob o seu comando enfrenta nos dias presentes, com a constante e crescente diminuição do seu rebanho.
Escreve ele: “Hoje o barco da Igreja, com o vento contrário da História, navega através do oceano agitado do tempo. Muitas vezes temos a impressão de que vai afundar. Mas o Senhor está presente e chega no momento oportuno”.
Que “vento contrário da História” é esse? Por acaso não é o que ele mesmo está soprando para afastar a Igreja dos seus fiéis, radicalizando cada vez mais no seu conservadorismo, perseguindo quem não come na sua mão?
De onde ele tirou esta “impressão de que vai afundar?” Quem lhe contou? Será que o Papa caiu na real? E o que ele fez até agora para evitar que isto aconteça, além de esperar pela divina providência?
Se alguém tiver respostas para estas questões todas, pode enviá-las ao Balaio. Caso contrário, será preciso esperar pelo lançamento do livro no Brasil que será feito pela editora Planeta.
Bom fim de semana a todos.
Desta vez, dois mil e onze anos depois da primeira versão sobre sua passagem pela terra, o Papa simplesmente resolveu inventar uma nova biografia do Filho de Deus no livro “Jesus de Nazaré, da Entrada em Jerusalém até a Ressurreição”, lançado nesta quinta-feira, em que ele nega que Cristo tenha sido um “revolucionário”.
Para ficar de acordo com as suas obsessões e gostos pessoais, e adaptá-la mais às conveniências das sacristias do que à vida dos cristãos, simples mortais como todos nós, nesta biografia o Papa afirma que Jesus “não vem ao mundo como um destruidor”, mas “com o dom da cura”, para revelar “o poder do amor”.
Para começo de conversa, quem foi que disse essas coisas que ele desmente e as que proclama? De onde tirou isso?
Bento 16 nega uma afirmação que nunca ninguém fez para fazer uma outra que reduz seu papel na história a um curandeiro amoroso. Quem foi, aonde foi que se chamou Jesus de “destruidor”?
No segundo volume do seu livro sobre a vida de Jesus Cristo, o Papa-biógrafo escreve como se fosse testemunha ocular, um contemporâneo dele: “Jesus, com sua mensagem e modo de agir, inaugurou um reino não político do Messias e começou a separar uma coisa da outra”.
Nem Cristo separou política de religião, como me ensinaram os padres no colégio onde estudei, e assim aprendemos por toda parte até hoje, lá aonde a Igreja sobrevive aos dogmas papais, nem Bento 16, exatos 2010 anos depois, foi capaz desta proeza, como demonstrou ainda no ano passado ao utilizar seu cargo para convencer bispos brasileiros a apoiar a candidatura presidencial de José Serra.
A hipocrisia do sumo pontífice, que escreve uma coisa no livro e na vida real pratica outra exatamente oposta, fica clara no contundente artigo “O Cristo que vive entre nós” escrito pelo meu velho e brilhante amigo Mauro Santayana, um jornalista que entende tanto de religião como de política.
“A afirmação mais grave do Papa, de acordo com o resumo de suas ideias, é a de que política e religião são instituições separadas a partir de Cristo. A própria história do Vaticano o desmente. A Igreja Católica _ e todas as outras confissões religiosas _ sempre estiveram a serviço do poder político, e em sua expressão mais desprezível.
Para não ir muito longe na história _ ao tempo da associação entranhada entre os reis, os imperadores e o Vaticano, durante a Idade Média _, bastam os exemplos do nosso século. Os documentos existentes demonstram o apoio da Igreja a ditadores como Hitler, considerado, por Pio XII, como `um bom católico´.
(…) Por acaso, não se trata de uma escolha política do Vaticano a rápida canonização do fundador da Opus Dei, como santo da Igreja, e o esquecimento de grandes papas, como João 23, e de mártires da fé, como o bispo Oscar Romero, de El Salvador?”.
Sem citar a Teologia da Libertação, seu alvo predileto desde os tempos de cardeal da inquisição responsável no Vaticano pelo julgamento de religiosos progressistas como Leonardo Boff, o frade brasileiro banido da Igreja Católica, o Papa se refere a “uma onda de teologias políticas e de teologias da revolução”, na década de 1960, que teriam por objetivo “legitimar a violência como meio para instaurar um mundo melhor”.
Pelos relatos até agora divulgados, embora queira defender exatamente o contrário, negando o papel político e revolucionário de Jesus Cristo na História, Bento 16 escreveu outro livro mais político do que religioso, mais ideológico do que teológico. Mauro Santayana foi direto ao ponto:
“Ao negar a essencial ligação entre a fé cristã e a ação política, o Papa vai além do seu velho anátema contra a Teologia da Libertação, surgida na América Latina, um serviço que ele e Wojtyla prestaram, com empenho, aos norte-americanos. Ele se soma aos que, hoje, ao separar a política da ética da justiça, decretam o fim da esquerda”.
O Papa pode brigar com fatos históricos de dois milênios atrás, mas parece bem informado sobre as dificuldades que a Igreja sob o seu comando enfrenta nos dias presentes, com a constante e crescente diminuição do seu rebanho.
Escreve ele: “Hoje o barco da Igreja, com o vento contrário da História, navega através do oceano agitado do tempo. Muitas vezes temos a impressão de que vai afundar. Mas o Senhor está presente e chega no momento oportuno”.
Que “vento contrário da História” é esse? Por acaso não é o que ele mesmo está soprando para afastar a Igreja dos seus fiéis, radicalizando cada vez mais no seu conservadorismo, perseguindo quem não come na sua mão?
De onde ele tirou esta “impressão de que vai afundar?” Quem lhe contou? Será que o Papa caiu na real? E o que ele fez até agora para evitar que isto aconteça, além de esperar pela divina providência?
Se alguém tiver respostas para estas questões todas, pode enviá-las ao Balaio. Caso contrário, será preciso esperar pelo lançamento do livro no Brasil que será feito pela editora Planeta.
Bom fim de semana a todos.
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