quarta-feira, 16 de março de 2011

"O Jesus de Nazaré de Joseph Ratzinger", por Eduardo Hoornaert. Fonte: www.adital.org.br

 
Nos intervalos de seus múltiplos compromissos como líder da igreja católica, o papa Bento XVI encontrou tempo para concluir um livro que já estava preparando desde algum tempo e que apresenta em dez capítulos a primeira parte da vida de Jesus: seu batismo; suas tentações; as falas do Reino de Deus; o sermão da montanha; as orações; os discípulos; as parábolas; as grandes imagens de São João; a confissão de Pedro; a autodefinição. O livro, publicado pela editora Planeta de São Paulo em 2007, é reflexo de muita meditação sobre a figura de Jesus e pode funcionar, nas prateleiras de nossas livrarias, como uma saudável opção diante de tantas publicações sensacionalistas que apresentam Jesus como o maior psicólogo que já existiu, o melhor líder e - por que não dizer? - o melhor vendedor. O autor sabe valorizar a beleza, a espiritualidade da vida e a ‘liturgia cósmica’. Ele se mostra sintonizado com autores como Romano Guardini, Hans Urs von Balthasar, Evdokimov , Pieter van der Meer e Reinhold Schneider, todos citados na bibliografia. As páginas sobre as ‘grandes imagens de São João’ (água, pão, vinho e pastor), por exemplo, são excelentes. Estamos diante de uma meditação e um aprofundamento da fé.
O autor declara que pretende situar-se na trajetória das pesquisas em torno de ‘Jesus histórico’, que têm ocupado muitos especialistas em estudos neotestamentários nos últimos cento e cinqüenta anos. É esse aspecto que pretendemos comentar neste texto. O autor inicia o livro com uma longa introdução de quase vinte páginas, na qual explicita que não pretende apenas escrever um livro de espiritualidade, mas, ao mesmo tempo, um ensaio de caráter científico. E diz com muita franqueza que não escreve na qualidade de líder da igreja católica, mas na qualidade de estudioso no assunto e que, portanto, todo(a) leitor(a) pode livremente discutir o que ele expõe em seu livro, sem preocupar-se com questões de ‘magistério’ (p. 19). A única coisa que ele pede é simpatia por seu esforço. De minha parte, só posso sentir simpatia pelo fato de um papa resolver estudar com seriedade os evangelhos e dispor-se a aceitar críticas. Pensei então em tecer algum comentário crítico em torno dos dois últimos capítulos do livro: a profissão de Pedro e a auto-afirmação de Jesus.
No penúltimo capítulo do ensaio, o autor interpreta o famoso trecho de Mt 16, 17-19, sobretudo as palavras: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja’. São palavras que –lidas hoje- tocam na corda sensível da autocompreensão da hierarquia católica. Nós católicos estamos acostumados a ler a frase num sentido institucional, o que se evidencia nas enormes letras que figuram na cúpula da Basílica de São Pedro, em Roma. Pedro seria a Pedra sobre a qual Jesus pretende construir sua igreja. Mal nos damos conta de que essa leitura de Mt 16, 17-19 não é a tradicional, pois só aparece no século V. Nos primeiros séculos, os referidos versos costumavam ser interpretados como um elogio de Jesus diante da fé e da segurança demonstradas por Pedro. Jesus fica entusiasmado em verificar que Pedro entende que ele é o Messias e não algum profeta ressuscitado. É assim que, até hoje, as igrejas ortodoxas interpretam o texto, como nos informa Meyendorff (The Primacy of Peter. Essays on Ecclesiology and the Early Church, Crestwood (NY), St. Vladimir‘s Seminary Press, 1992) que explica as palavras de Jesus a Pedro como a afirmação da fundamentação da igreja cristã na confissão de fé messiânica e, consequentemente, como elogio a Pedro que –diferentemente dos demais apóstolos– professa que Jesus é o Messias. Essa profissão significa algo muito importante na vida de Pedro, pois ele bem sabe que é arriscado dizer que Jesus é o Messias. Uma afirmação pública pode levar à morte. O texto foi escrito com o olhar voltado para o leitor, do qual se supõe que ele está na situação de Pedro. Ao narrar que Pedro interpreta sua própria vida de maneira nova ao dizer que Jesus é o Messias, o texto desafia o ouvinte/leitor do evangelho. Pedro, agora, não é mais pescador de peixe. Doravante sua vida só tem sentido dentro do apostolado. Ao rigor, a ‘confissão’ de Pedro diz respeito ao compromisso do ouvinte ou leitor do evangelho. Trata-se de um reconhecimento. Pedro experimentará mais adiante o que isso implica, pois a perseguição virá logo. O momento na companhia do Messias será curto, embora repleto de oportunidades excepcionais. Pedro sabe que tem de aproveitar ao máximo o ‘momento atual de oportunidades’ (como fala Paulo). Cada momento da vida que lhe resta serve para fazer algo de positivo na família e na sociedade. Pedro vive o tempo messiânico e, portanto, pode ser considerado ‘cristão’ (termo que equivale a ‘messiânico’). Eis como se lê Mt 16, 17-19 nos primeiros tempos, e isso se comprova pela comparação com outros textos da primeira literatura cristã (sobretudo Paulo) que se referem à vida em ‘tempo messiânico’.
Mas, essa primordial leitura se altera radicalmente por conta das longas confusões eclesiásticas que duram séculos e alcançam seu ponto mais crítico no concílio de Calcedônia em 451. Aqui outro autor, Wojtowytsch (Papsstum und Konzile von den Anfängen bis zu Leo I (440-461). Studien zur Enstehung der Überordnung des Papstes über Konzile, Stuttgart, A Hiersemann Verlag, 1981) pode nos servir de guia. Ele descreve que, até o final do século III, o papado não invoca Mt 16, 17-19, pois não se considera a instância diretriz da igreja. Os sínodos locais tomam decisões livre e soberanamente, normalmente na linha da tradição apostólica. Isso não muda na primeira parte do século IV. Os padres reunidos em Arles (314), Nicéia (325) e Sárdico (342) manifestam respeito diante do bispo de Roma, mas não veem nele nenhuma instância jurídica superior. Casos já julgados em Roma são tranqüilamente reexaminados e mesmo alterados pelos bispos reunidos em concílio. Notifica-se o papa por uma questão de deferência, nada mais. Os papas Silvestre e Libério (primeira parte do século IV) não reivindicam qualquer superioridade sobre o concílio. As coisas começam a mudar na segunda parte do século IV, com Damásio (366-384) e Sirício (384-399), que passam a usar termos como ‘cathedra Petri’ e fazem questão de incumbir alguns clérigos da guarda dos pretensos sepulcros de São Pedro e São Paulo em Roma. Aparece a imagem do barco da igreja com papa no leme, assim como a imagem paulina do corpo místico passa a mostrar o papa como ‘cabeça’ e os bispos como ‘membros’ da igreja. Ao mesmo tempo, a chancelaria papal empresta vocábulos da administração imperial como ‘Príncipe’ e ‘Pontífice’. Cresce a animosidade entre os patriarcados rivais de Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla. Roma distancia-se cada vez mais dos patriarcados gregos, insistindo na sua própria supremacia, sobretudo depois de 331 (inauguração de Constantinopla como nova capital do império). Novos distanciamentos e novas provocações acontecem sob Inocêncio I (401-417), que passa a intervir sistematicamente em assuntos de igrejas locais na Gália e Espanha, cada vez que uma ocasião se apresenta. O papa exige relatórios de casos ocorridos nas igrejas locais e reserva para si a última decisão. É verdade que nos casos que envolvem as igrejas orientais, Inocêncio é bem mais discreto. No caso de João Crisóstomo (Constantinopla), ele propõe convocar um concílio. Mas Celestino I (422-432) decide resolver pessoalmente o caso de Nestório, surgido em Alexandria, e delega o patriarca Cirilo de Alexandria como seu representante no concílio de Éfeso (431), sob protestos dos bispos da África. Embora se diga que Agostinho é o autor da frase ‘Roma locuta, causa finita’, o teólogo sempre afirma que a autoridade romana não pode entrar em concorrência com a igreja universal, representada pelo concílio plenário dos bispos.
Afinal, o primeiro papa que lê Mateus 16, 17-19 de forma exclusivista (e com isso ‘corta’ a igreja em dois pedaços) é o papa Leão I (440-461). No seu ‘Tomus ad Flavium’, de 449 (ironicamente, o termo ‘tomos’, em grego, significa ‘pedaço cortado’), humilha o patriarca de Constantinopla. O papa de Roma já tinha agido como chefe absoluto e controlado nos mínimos detalhes os concílios realizados na Espanha, Itália do Norte e África do Norte, mas agora se mete na suprema autoridade do Oriente ao entrar na controvérsia monofisita. Ele despreza a intervenção alexandrina e finalmente convoca o concílio de Calcedônia (451). No decorrer do concílio, o papa transmite ordens aos padres reunidos por meio de seus legados, declara nulas as decisões que não lhe agradam (como o cânone 28 que realça a importância da Sé de Constantinopla) e assim torna-se efetivamente o ‘dono de Calcedônia’. A postura do papa em Calcedônia impressiona e a correspondência em torno do evento é cuidadosamente guardada. Nela consta pela primeira vez uma fundamentação explícita do primado romano a partir de Mt 16, 17-19.
No final desta longa explanação de ordem historiográfica só tenho de dizer que a interpretação institucional de Mt 16, 17-19 não é a única nem a mais antiga. Ela não é aceita por todos os cristãos (até hoje os ortodoxos não a aceitam) nem representa uma leitura propriamente tradicional, pois só ganha força muito tardiamente, com o papa Leão I (440-461). Hoje, diante da urgência em dialogar com a diversidade religiosa que se manifesta mais claramente a cada dia que passa, é melhor abandonar esse embasamento do primado romano.
O último capítulo do livro em exame aborda o tema da auto-afirmação de Jesus enquanto ‘filho de Deus’. O ‘eu sou’ (em grego ‘egô eimi’) de Jesus é ‘absoluto’, afirma o autor. Aqui ele se fundamenta no evangelho de João, onde se lê, no capítulo oito, que Jesus declara: ‘Antes que Abraão existisse, eu sou’ (Jo 8, 58). No episódio com o cego de nascimento (capítulo nove), João diz que o rapaz nasceu cego ‘para que a ação de Deus se manifestasse através dele’ (9, 3), ou seja, a ação de Jesus se identifica com a ação de Deus. No capítulo dez, Jesus proclama que só ele é dono dos cordeiros. Os outros são ladrões e assaltantes. ‘Olhem, eu digo que quem não entra pela porteira, mas pula a cerca dos cordeiros é ladrão, é bandido’. Tanta auto-afirmação leva o povo de Jerusalém a gritar: ‘Jesus está blasfemando’. Tudo chega a um paroxismo no capítulo onze, após a ressurreição de Lázaro (vv. 1-44). O sinédrio se reúne às pressas (v. 45) e Caifás, sumo sacerdote do ano, pronuncia o veredicto: é melhor que Jesus morra. A história desemboca no drama da paixão, morte e ressurreição de Jesus. No evangelho de João, o ‘eu sou’ de Jesus faz com que ele não se compara com nenhuma figura da história de Israel, nem com Abraão, o pai de Israel. Numa só ocasião (7, 49), Jesus ele é comparado com outras pessoas. Pelo resto, ele sempre aparece no evangelho de João como quem sabe tudo de antemão, não faz perguntas a ninguém, a não ser para testar a fé dos outros, e se iguala a Deus.
O que dizer? No tocante à afirmação da divindade de Jesus, o evangelho de João entra em vivo contraste com os evangelhos sinóticos. No evangelho de Marcos, por exemplo, Jesus declara explicitamente não ser Deus: ‘Por que você me chama bom? Ninguém é bom senão Deus, só Deus’ (10, 18). Nos sinóticos se conta que João Batista inicia Jesus no ofício de pregador popular e batiza Jesus no Jordão ‘para a remissão dos pecados’. Mas no evangelho de João se omite a narrativa do batismo de Jesus e apenas se relata que Jesus aparece à beira do rio Jordão (1, 29-33). Ele não vem batizar ‘pela água, mas pelo Sopro Santo’. João Batista declara: ‘ele (Jesus) deve crescer, eu diminuir (3, 30). João Batista não fez nenhum sinal, mas tudo o que ele disse a respeito dele (de Jesus) é verdadeiro’ (10, 41). Além disso, apaga-se qualquer rastro de possível rivalidade entre o grupo de Jesus e o grupo de João Batista (o conflito aparece discretamente nos sinóticos). De tanto insistir na excepcionalidade de Jesus, o evangelho de João perde muito em termos de veracidade histórica, como dizem os exegetas.
Tudo isso nos convence que só conhecemos Jesus e seu movimento mediante textos. Não temos um conhecimento direto. Ora, os textos são por vezes contraditórios. Como unir a auto-afirmação ‘absoluta’ de Jesus no evangelho de João com a declaração humilde de Mc 10, 18 (só Deus é bom, eu não)? Há outras contradições, mesmo dentro de um mesmo evangelho. Em Mt 28, 19, Jesus manda evangelizar todos os povos, enquanto em Mt 10, 5-6 e 15, 24 ele proíbe evangelizar fora de Israel. Há tantas contradições nos evangelhos que a leitura ‘ao pé da letra’ só pode levar ao desapontamento. Em Mateus, Maria mora em Belém, em Lucas, ela mora em Nazaré. Em Mateus, o Sopro vem na hora do batismo, em Lucas antes da concepção (em Paulo depois da ressurreição). Em João 1, 33, João não conhece Jesus, enquanto em Lucas, Isabel é prima de Maria. Em Mateus, o pai de José chama-se Jacó, em Lucas, ele se chama Heli. O nascimento de Jesus, segundo Lucas e Mateus, acontece em Belém. Marcos e João não dizem nada a respeito e os informantes antigos não-evangélicos falam de um nascimento em Nazaré. Fica claro que não se pode avançar na leitura dos evangelhos sem tomar em conta os contextos em que foram redigidos, ou seja, sem ficar atento à mediação literária. Um pouco por toda parte, o velho método de se retalhar os textos evangélicos em trechos separados está sendo abandonado. Somente a leitura inteira dos evangelhos dá uma idéia do que cada autor quer dizer. Os evangelistas não são repórteres de fatos ocorridos com Jesus, nem simplesmente proclamadores ‘kerigmáticos’ que seguem um esquema preestabelecido. Cada um tem sua personalidade e trabalha sobre um material disponível, compõe um enredo dentro de uma intencionalidade própria. Mateus não deve ser confundido com Lucas nem com Marcos. João muito menos. Um autor escreve por se sentir motivado e querer entrar em diálogo com seu público ouvinte ou leitor. Por conseguinte, só por meio de leitura de um texto inteiro conseguimos captar o que um determinado autor quer dizer.
Tomemos um exemplo. A expressão ‘filho de Deus’ figura no primeiro verso do evangelho de Marcos e volta reiteradamente no evangelho de João. Será que a expressão significa o mesmo em ambos os casos? Para captar o que tanto Marcos como João querem dizer, não basta analisar os versos, é preciso ler os evangelhos inteiros e aí se verá que, desde o começo, Marcos mostra que Jesus é bastante forte para enfrentar o poder de Satanás, que o ataca no decorrer de todo o evangelho. Diante do poder dos filhos das trevas se eleva o poder do filho de Deus. João, de sua parte, escreve que Jesus é filho de Deus num contexto bem diferente. Há problemas com o farisaísmo que se reorganiza após os traumas dos anos 70 e os cristãos são malvistos nas sinagogas. Em certos casos, até expulsos. O termo ‘filho de Deus’ assume uma conotação nitidamente apologética diante das ameaças provenientes da ortodoxia judaica. Em suma, só lendo os textos inteiros conseguimos saber o que cada autor quer dizer. Misturar trechos de diversos evangelistas a fim de comprovar alguma tese, seja ela teológica ou eclesiástica, é tendencioso. Aí aparece o velho perigo da ‘interpretação de fora para dentro’, dos anacronismos, da ideologização e das apologias de posicionamentos assumidos antes de se iniciar a leitura.
O ensaio de Josef Ratzinger não escapa à ‘interpretação de fora para dentro’(em alemão: hineininterpretierung). Vale a pena compará-lo com outros livros sobre Jesus, disponíveis nas boas livrarias. Menciono apenas o livro ‘As várias Faces de Jesus’, da autoria de Geza Vermes, que usa um método mais convincente para se aproximar da figura histórica de Jesus de Nazaré (veja Editora Record, Rio de Janeiro, 2006. Há outros comentários da vida de Jesus disponíveis no mercado livreiro brasileiro: Meier, Brown, Crossan, Charlesworth, Duquesne, Sobrino, Boff, Betto, Hick, Theissen, Cornell, Irarrazaval, Nolan, Haight, Spong, Saramago). De nossa parte, preferimos o método de Vermes à maneira em que Ratzinger lê os textos, pois o primeiro situa sempre os textos no seu devido contexto. Mas, em última análise, quem está diante do texto evangélico é você, prezado(a) leitor(a). Você é livre e decide como prefere ler os evangelhos. Ninguém pode impedi-lo de seguir o fundamentalismo do papa.


Eduardo Hoonaert
Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo

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